Jaime Cortesão: escritos e geografias do exílio

Francisco Roque de Oliveira

Nos dias 10 e 11 de Maio de 2018 decorreu na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, o Simpósio Internacional Jaime Cortesão: escritos e geografias do exílio. Tratou-se de uma iniciativa conjunta do CEG-Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e do CHAM-Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, em parceria com a Biblioteca Nacional de Portugal. Esta reunião foi realizada no âmbito das actividades do Projecto de Investigação FCT/CAPES «Saberes geográficos e geografia institucional: influência e relações recíprocas entre Portugal e o Brasil no século XX», desenvolvido no Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, e do grupo de investigação Leitura e Formas de Escrita do CHAM.

Este Simpósio propôs-se reunir os mais recentes resultados da investigação que vem sendo realizada em torno da obra do autor de Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid e da História do Brasil nos velhos mapas. Pretendeu-se também aprofundar o conhecimento sobre os sucessivos contextos de exílio que Jaime Cortesão enfrentou na Europa e no Brasil durante mais de 30 anos, com destaque para aqueles que decorreram na Espanha republicana e no Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950. Esta iniciativa foi ainda pensada como uma oportunidade para reflectir sobre o importante legado de Cortesão enquanto editor e tradutor, assim como para analisar o estado actual dos projectos de edição da sua obra, tanto em Portugal como no Brasil.

A escolha da Biblioteca Nacional de Portugal para local de realização deste Simpósio representou um gesto simbólico. Jaime Cortesão (1884-1960) foi o mais destacado director da então chamada Biblioteca Nacional de Lisboa durante a I República Portuguesa (1910-1926). A partir de 1919, quando foi nomeado para esse cargo, Cortesão teve oportunidade de executar aí um notável trabalho de reorganização administrativa e técnica e – sobretudo – de doutrinação cultural e cívica, tendo sido saneado em 1927, na sequência da instauração da ditadura militar em Portugal. Médico por formação e escritor por vocação, este intelectual multifacetado foi poeta e ficcionista, dramaturgo e escritor de viagens, pedagogo das Universidades Populares das primeiras décadas do século XX e, finalmente, o historiador-geógrafo que realizou a síntese entre a historiografia dos Annales de Lucien Febvre e Marc Bloch e a geografia humana de Camille Vallaux e Jean Brunhes aplicada à história de Portugal e do seu império.

Jaime Cortesão foi também um homem de acção política muito empenhado e, por isso mesmo, sempre muito temido pela ditadura portuguesa. Os atribulados anos da sua permanência em Espanha e França, entre 1927 e 1940, representam a experiência de um dos principais protagonistas de exílio republicano português acossado e disperso entre Madrid, Barcelona, o sul de França e Paris. Banido para o Brasil por ordem de Salazar, em 1940, Cortesão relançou no Rio de Janeiro o magistério e as pesquisas que fizeram dele a mais importante figura da historiografia luso-brasileira do século XX. Regressado definitivamente a Portugal em 1957, foi eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores e proposto como candidato à Presidência da República pela oposição não comunista organizada sob a égide do Directório Democrato-Social, indigitação essa que declinou. Preso uma última vez por motivos políticos quando contava já 74 anos de idade, foi libertado na sequência de uma intensa campanha internacional de protesto encabeçada pela imprensa brasileira. Depois de reinstaurada da democracia em Portugal, Cortesão seria reintegrado na função pública a título póstumo, restituindo-se-lhe então as honras e dignidades de que fora arbitrariamente privado, como se lê no Decreto-Lei 275, de 14 de Agosto de 1980, que determinou esta reparação moral.

Através do estudo de algumas das principais peças da obra de Jaime Cortesão, os participantes neste Simpósio tiveram oportunidade de inquirir aspectos associados à duradoura marca deixada na ciência e na universidade portuguesas por força dos exílios e de toda a série constrangimentos mais discretos, mas nem por isso menos eficazes, impostos pela ditadura à actividade científica e ao saber em geral. Nesse sentido, Cortesão foi também estudado como um protagonista, entre outros, de uma brilhante diáspora política e científica que tem inúmeras afinidades com a diáspora republicana espanhola que se viu obrigada a reinventar-se nas Américas na mesma época, fazendo frutificar aí as suas competências intelectuais e o seu cosmopolitismo. O Simpósio estruturou-se em três mesas distintas, precedidas por uma sessão de abertura e uma conferência inaugural, conforme a sequência que passamos a resenhar.

Usaram da palavra na sessão de abertura os directores dos dois Centros de investigação organizadores – Mário Vale pelo CEG e João Paulo Oliveira e Costa pelo CHAM –, Carlos Kessel, chefe do Setor Cultural da Embaixada do Brasil em Lisboa, Vera Lucia Amaral Ferlini, responsável pela Cátedra Jaime Cortesão da Universidade de São Paulo e Instituto Camões, para além de Francisco Roque de Oliveira, pela comissão organizadora do Simpósio. A lição inaugural esteve a cargo de Joaquim Romero Magalhães (Universidade de Coimbra), que dissertou sobre «O desconhecido Brasil, de los comienzos a 1799, de Jaime Cortesão (1956)». Trata-se de uma obra que apareceu integrada no volume 26 da Historia de América y de los Pueblos Americanos dirigida por Antonio Ballesteros y Berreta, publicada em Barcelona pela Editorial Salvat. Sabe-se que a mesma obra teve origem num contrato assinado ainda em 1933, quando Cortesão vivia exilado em Madrid e cuja concretização em livro seria protelada pelas vicissitudes da Guerra Civil de Espanha e da II Guerra Mundial.

A primeira mesa do Simpósio foi subordinada ao tema «Jaime Cortesão, editor e edições», tendo sido preenchida por duas comunicações que articularam a principal actividade de Cortesão enquanto publicista durante a I República Portuguesa e o seu contributo como editor e tradutor ao longo das décadas seguintes. Daniel Pires (Centro de Estudos Bocageanos e CLEPUL-Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa) trouxe uma comunicação sobre «Jaime Cortesão, o Grupo da Biblioteca e a Seara Nova», tendo apresentado uma carta desconhecida na qual o escritor e jornalista Raul Proença – chefe da Divisão dos Serviços Técnicos da Biblioteca Nacional durante a Direcção de Cortesão – se insurge contra a censura imposta na sequência do golpe militar do 28 de Maio de 1926, que instituiu a ditadura em Portugal. Coube a Daniel Melo (CHAM) apresentar «Jaime Cortesão enquanto promotor da edição e da leitura», sumariando a fecunda actividade que decorreu entre a colaboração de Cortesão com o movimento cultural Renascença Portuguesa e o magistério da Universidade Popular do Porto, em 1914, e o seu trabalho como editor literário no Brasil, passando pelo compromisso que teve com a Associação Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura, em particular por via da participação nos Congressos Internacionais de Escritores pela Defesa da Cultura de 1935 (Paris) e 1937 (Valência-Madrid-Barcelona-Paris).

Jaime Cortesão durante o seu exílio no Brasil (c. 1950)
Jaime Cortesão durante o seu exílio no Brasil (c. 1950)

A segunda mesa foi dedicada à «Escrita da História», agrupando quatro comunicações. Vera Ferlini apresentou «Jaime Cortesão: novas dimensões para a História de São Paulo». Partindo das obras A Fundação de São Paulo – Capital Geográfica do Brasil (1955), Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1952-1961) e Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil (1958), Ferlini salientou o modo como as mesmas dialogaram com as perspectivas historiográficas do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e as teses de alguns dos seus notáveis historiadores brasileiros de então, como Afonso d’Escragnolle Taunay e Sérgio Buarque de Holanda. Renato Amado Peixoto (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) centrou a sua intervenção intitulada «Oxymoron: Cortesão, Varnhagen, o Meridiano de Tordesilhas e a representação da Formação do Brasil» numa perspectiva equivalente a essa. Neste caso, tratou-se de confrontar alguns dos conteúdos consolidados na historiografia brasileira do século XIX, que se repercutiram duradouramente na construção programática da identidade nacional através do ensino da Geografia e da História, com algumas das teses que Cortesão gizou para explicar o processo de formação territorial deste país e que formalizou em dois projectos editorais organizados no âmbito do Ministério das Relações Exteriores do Brasil: o Atlas Histórico do Brasil (1959) e a História do Brasil nos velhos mapas (1957-1971).

«Os irmãos Jaime e Armando Cortesão. Dos exílios e das polémicas historiográficas na expansão atlântica» constituiu o título escolhido por Rui S. Andrade (Centro de História da Universidade de Lisboa), numa comunicação centrada em algumas das mais relevantes teorias que estes dois historiadores desenvolveram ao longo de décadas no quadro de um esforço intelectual mais vasto, com raízes fundas na historiografia do século XIX, e de que são exemplo a chamada «política do sigilo» e o suposto descobrimento pré-colombino da América pelos portugueses. Como ilustrou Andrade, tais teorias estiveram na origem de um intenso debate travado entre os irmãos Cortesão e diversos académicos anglo-saxónicos, assim como com alguns dos seus pares portugueses e brasileiros, constituindo um dos aspectos mais interessantes, mas também mais controversos do seu legado. A fechar a sessão, José Manuel Garcia (Academia Portuguesa da História) apresentou «Os Descobrimentos Portugueses de Jaime Cortesão: balanço de uma carreira historiográfica». Como o título indicia, tratou-se de uma abordagem àquela que constitui a última grande empresa historiográfica de Cortesão, vista aqui, simultaneamente, como ponto de chegada e síntese monumental de cerca de quatro décadas de carreira no domínio da história da expansão portuguesa.

A última mesa do Simpósio agrupou três comunicações à volta do tema genérico «Geografias do exílio». Cristina Clímaco (Université Paris 8) leu «O exílio europeu de Jaime Cortesão e a luta antifascista (1927-1940)», descrevendo e contextualizando os períodos de permanência de Cortesão em Espanha e França na sequência da sua participação na frustrada revolta de Fevereiro de 1927 contra a ditadura militar portuguesa e o papel que lhe coube como dinamizador de sucessivas iniciativas aglutinadoras da oposição no exílio. Entre estas, Clímaco destacou a União dos Antifascistas Portugueses Residentes em Espanha, criada em Madrid depois da vitória eleitoral da Frente Popular, em Fevereiro de 1936, e a Delegação da Frente Popular Portuguesa instituída em Barcelona com apoio do governo republicano e da Generalitat da Catalunha. Francisco Roque de Oliveira (CEG-Universidade de Lisboa), Roger Lee de Jesus (Universidade de Coimbra) e Rui S. Andrade apresentaram «Abraça-te o teu irmão muito amigo: a correspondência entre Jaime e Armando Cortesão», tendo sintetizado o conteúdo do extenso conjunto de cartas dispersas pelos arquivos de Lisboa, Coimbra e Rio de Janeiro através das quais se podem seguir as vicissitudes do exílio durante muito tempo partilhado pelos irmãos Cortesão, os contextos que os enquadraram, assim como o desenvolvimento das respectivas obras científicas, designadamente no domínio da história da cartografia, cujo interesse partilharam. Por último, Aquilino Machado (CEG-Universidade de Lisboa) expôs «Do Vera Cruz ao Brasil: entre a viagem de Aquilino Ribeiro e as geografias do exílio de Jaime Cortesão», comunicação centrada nos registos autógrafos e na documentação existente sobre a deslocação de Aquilino Ribeiro ao Brasil, em 1952, e o círculo de sociabilidades do exílio político português aí radicado com o qual este escritor manteve importantes contactos.

Em sessão extraordinária que decorreu no início do segundo dia de trabalhos, Roger Lee de Jesus introduziu os dois únicos registos sonoros de Jaime Cortesão editados em disco no final da década de 1950. De seguida, o mesmo Roger Lee de Jesus e Francisco Roque de Oliveira apresentaram o Diaporama que elaboraram a partir da longa entrevista concedida por Cortesão ao jornalista Igrejas Caeiro em 1958 e então emitida pelo Rádio Clube Português. Na mesma ocasião, foi exibido na sala Multimédia da Biblioteca Nacional o episódio do documentário À Porta da História dedicado a Jaime Cortesão. Realizado por Jorge Paixão da Costa para a Rádio e Televisão de Portugal (RTP) em 2015, este episódio foi gentilmente cedido para exibição não comercial durante o Simpósio pela Ukbar Filmes. Paralelamente, os Serviços da Biblioteca Nacional de Portugal, coordenados por Manuela Rêgo, organizaram uma pequena mostra bibliográfica que reuniu algumas das mais importantes obras de Jaime Cortesão nos domínios da historiografia – sobretudo sobre o Brasil –, da crónica de viagens, do registo memorialístico de guerra e da poesia.

Cortesão foi estudado como um protagonista, entre outros, de uma brilhante diáspora política e científica que tem inúmeras afinidades com a diáspora republicana espanhola que se viu obrigada a reinventar-se nas Américas na mesma época, fazendo frutificar aí as suas competências intelectuais e o seu cosmopolitismo.

Entre as sucessivas iniciativas aglutinadoras da oposição portuguesa no exílio dinamizadas por Jaime Cortesão, destacou-se a União dos Antifascistas Portugueses Residentes em Espanha, criada em Madrid depois da vitória eleitoral da Frente Popular, em Fevereiro de 1936, e a Delegação da Frente Popular Portuguesa instituída em Barcelona com apoio do governo republicano e da Generalitat da Catalunha.

Fotografia: Espólio Jaime Cortesão, Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa).

Para maiores informações:

Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. «Saberes geográficos e geografia institucional: influência e relações recíprocas entre Portugal e o Brasil no século XX» | Projecto Convénio FCT-CAPES | 2016-2018 | Proc. 44.1.00 CAPES / 8513/14-7 [página web] <http://www.ceg.ulisboa.pt/saberesgeograficos/>   

OLIVEIRA, Fran­cisco Roque de. A «Ilha Brasil» de Jaime Cortesão: ideias geográficas e expressão cartográfica de um conceito geopolítico. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. [Em linha]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 25 febrero 2017, Vol. XXII, nº 1.191. <http://www.ub.edu/geocrit/b3w-1191.pdf>

Francisco Roque de Oliveira é investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.

Investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e Professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.

Agricultora familiar do dendê, autonomia ou subordinação ao capital?

No espaço rural do município de Moju temos o berço da dendeicultura empresarial, onde ela está mais dinâmica e diversificada, bem como o lugar das pioneiras experiências de integração da agricultura familiar à cadeia produtiva do dendê. Na constelação de empresas, normas e unidades produtoras familiares de dendê, destaca-se a experiência do Grupo Agropalma por ser a pioneira, com 14 anos de atuação, e por contar com um nível de enraizamento e abrangência amplo; o que o tornou protótipo para os projetos de empresas como Marborges SA, Biopalma SA e Belém Brasil Bioenergia SA.

Dentre as oleaginosas, o dendezeiro apresenta maior produtividade em todo o mundo, com rendimentos entre 4t a 6t de óleo ha/ano, o que corresponde a 1,5 vezes a produtividade do óleo de coco, a 2 vezes a do óleo de oliva e mais do que 10 vezes a do óleo de soja. No entanto, tão importante quanto ressaltar as potencialidades econômicas, ambientais e sociais do dendê, é refletir sobre as metamorfoses no modo de vida do lugar onde esse cultivo se expande. Nesse sentido, analisa-se as relações entre dendeicultura e agricultura familiar no espaço agrário do município de Moju, estado do Pará, a partir do projeto de produção familiar de dendê criado pela associação entre o Estado brasileiro e capital nacional e internacional.

O universo da pesquisa compôs-se de 44 unidades familiares integrantes dos projetos de dendê familiar I e III da comunidade do Arauaí, que estão integradas ao Grupo Agropalma. A média de membros que compõem os núcleos familiares dos integrados à cadeia produtiva do dendê ficou em torno de quatro pessoas por família. No que diz respeito aos titulares dos projetos, 84% são do sexo masculino, e 16%, do sexo feminino. O tamanho das famílias de 45% dos agricultores oscila entre quatro a seis pessoas; 41% dos entrevistados têm família com um a três pessoas, e 14% deles têm sete ou mais familiares.

Tendo como ponto de partida e enfoque metodológico o território usado, isto é, a área e o uso reciprocamente associados, mostramos que o projeto de agricultura familiar do dendê possibilita a empresa usufruir da produção da área e da força de trabalho sem estabelecer relações de assalariamento ou mesmo sem ser proprietária de terra, reeditando prática comum na região amazônica principalmente nos momentos em que os auge do mercado exigiram alta produção de borracha, juta e pimenta do reino.

Os projetos de agriculta familiar do dendê, longe de ser a panaceia para os problemas do meio rural da Amazônia paraense, constituem isto sim mais um capítulo da questão agrária na Amazônia, onde as virtudes de um produto (drogas do sertão, borracha, manganês, ferro, bauxita, energia, gado) mostram-se insuficientes para assegurar espaços menos desiguais e mais justos. A dendeicultura não é a solução, nem é a causa dos males que afligem o espaço agrário nas áreas antropizadas. É preciso superar a tradição política que subordina o desenvolvimento da Amazônia à ascensão e queda de um produto no mercado mundial, que deposita todas as esperanças ou mesmo amaldiçoa determinado produto; política que se regozija ao dizer “nossos minérios”, “nossa floresta”, “nossas riquezas” ou mesmo que repete o mito do desenvolvimento em muitos adjetivos: regional, sustentável, territorial, participativo. Sempre mais do mesmo. Esquecendo-se de perguntar quem usufrui das riquezas, sejam elas essências florestais, borracha, madeira, minérios, energia hidroelétrica e dendê. Dendê para quem? Dendê por quê? Dendê para quê?

Portanto, é preciso perguntar quem ganha com a dendeicultura, pois tão importante quanto ressaltar as potencialidades econômicas, ambientais e sociais do dendê, faz-se necessário refletir sobre quem usufrui dos dividendos dessas potencialidades, ou seja, quem fica com a renda da terra e se beneficia do território; refletir sobre os impactos no modo de vida do lugar onde o agronegócio do dendê se implanta e expande, isto é, sobre o que significa passar da condição de lavrador para a de agricultor de dendê ou, de outro modo, de camponês tradicional para agricultor familiar do dendê, em outras palavras, trabalhador para o capital.

Para maiores informações:

NAHUM, João Santos. Agricultura familiar e dendeicultura no município de Moju, na Amazônia paraense. Cuadernos de Geografía, 2018, vol. 27, nº 1. <https://revistas.unal.edu.co/index.php/rcg/issue/view/4621>.

João Santos Nahum é docente de Geografia da Universidade Federal do Pará.

Conflitos recentes pela água no Brasil: em busca da justiça socioambiental

Wagner Costa Ribeiro*

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  Ainda que abundante em água, quando se analisam os dados de disponibilidade hídrica per capita, observa-se no Brasil um aumento dos conflitos por água nos últimos anos. Entre as causas podem-se apontar tanto a da distribuição dos recursos hídricos e da população, quanto, e principalmente, o uso da água para a produção agrícola e industrial.

  Estima-se que no Brasil ocorra cerca de 12% da água doce disponível no mundo. Porém, cerca de 70% desse volume encontra-se na Amazônia brasileira. Trata-se de uma área de ocorrência de rios caudalosos e perenes, associados à elevada pluviosidade do clima equatorial. Entretanto, nessa porção do país concentra-se cerca de 21 milhões de habitantes, pouco mais de 10% do total da população total. Mas é lá que estão as principais hidrelétricas que geram energia para todo o país, graças à integração do sistema de produção e distribuição de energia.

  Durante os últimos anos verificou-se um período de alternância de precipitações. Chuvas frequentes deixaram de ocorrer em locais onde elas chegavam regularmente. Áreas com índices pluviométricos em geral mais baixos atingiram períodos ainda mais longos de estiagem. Como consequência observou-se uma maior pressão social pelo uso da água, o que evidencia uma diversificada tipologia de conflitos pela água.

  Como o país adotou no passado a hidreletricidade como fonte central para produzir energia elétrica, a variação pluviométrica levou a um uso mais intenso de reservatórios de água para gerar energia. Além disso, utilizaram-se usinas termelétricas para suprir a demanda energética. Porém, foi na produção agrícola que os conflitos ficaram mais evidentes.

  Dados da Comissão Pastoral da Terra apontam que em 2016 foram registrados 172 conflitos por água no país. O gráfico a seguir indica um aumento expressivo nos últimos 10 anos.

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  A disputa pelo uso da água é evidente em muitas Unidades da Federação, com destaque tanto para aquelas que enfrentam secas regulares, como na Bahia, quanto nas que as chuvas são frequentes, mas com oscilação nos últimos anos, como no Pará. A disputa instala-se pela expansão da agricultura intensiva no uso da água, baseada na produção de monocultura de soja, cana-de-açúcar e até mesmo de pinus e eucalipto para produção de papel ou de madeira para construção civil ou de móveis, que chegou ao cerrado brasileira na década de 1970, mas que ganhou impulso nos últimos anos. Outra fonte de conflito é a barragem de rios para a construção de hidrelétricas, o que afeta a organização da vida de inúmeras comunidades. Contaminação de rios por rejeitos da atividade de mineração, como a que ocorreu em Minas Gerais em 2015, também estão entre as causas.

  Esse conjunto de problemas gerou movimentos populares destacados.

  Em setembro de 2014 a população do município paulista de Itu, que tem cerca de 160 mil habitantes, invadiu a Câmara de Vereadores para protestar contra um racionamento de água que já durava 8 meses, para parte da população, que ficou vários dias sem água. Como forma de luta, surgiram em alguns bairros incêndios que tinham como meta atrair carros de bombeiros para que a população se apropriasse da água. Também houve casos de saques a carros de abastecimento de água enviados pela empresa responsável pelo abastecimento de água no município, que desde 2007 fora privatizado. Itu parou, segundo registros da imprensa. Barricadas e invasões de órgãos públicos foram as estratégias da população para chamar atenção para o problema do desabastecimento de água.

  Já em 2017 ocorreu novo evento que ganhou ampla repercussão na imprensa do país. No mês de novembro, a população de Correntina, município localizado na Bahia com pouco mais de 33 mil habitantes, barrou a retirada de água para irrigação em fazendas locais. Esse fato foi noticiado de modo alarmista pela grande imprensa, que chegou afirmar tratar-se de um ato terrorista.

  Dias depois, a população voltou às ruas do município. Dessa vez, em número muito maior, para apoiar a ação do grupo anterior. Milhares de pessoas saíram de suas casas para mostrar que o uso da água é muito desigual. Enquanto apenas uma das fazendas tem autorização para retirar 106 milhões de litros por dia de água do rio Arrojado, que deságua no rio Corrente, que por sua vez chega ao rio São Francisco, a população consume cerca de 3 milhões de água por dia!

  Entre os manifestantes, indignados, observavam-se cartazes com os dizeres “Não somos terroristas”, “Ninguém vive sem água” e “O rio é nosso”. Ou seja, foi uma resposta tanto à imprensa apressada em desqualificar o movimento de justiça socioambiental quanto pela retomada das condições naturais dos cursos de água. O documentário Insurgência, dirigido por André Monteiro (disponível em https://youtu.be/iFTosuHoiw0), registrou esse movimento.

  A expansão da atividade produtiva no cerrado brasileiro, que distribui água para as principais bacias hidrográficas do país, está ocorrendo sem maiores cuidados ambientais. O desmatamento e uso intensivo da água estão entre as causas de diminuição da oferta hídrica e da redução da vazão de rios importantes, como é o caso do São Francisco. Esses aspectos, associados à alteração no padrão de chuvas, pode acarretar em sérias consequências sociais e ambientais, inviabilizando a organização social de inúmeras famílias que vivem em pequenas cidades ou em comunidades às margens dos rios.

  É fundamental estabelecer um novo pacto político para o uso das águas no Brasil. Nesse processo é necessário ajustar as outorgas de retirada de água no país. Não é mais possível priorizar apenas um uso da água, principalmente quando ele está associado a empresas transnacionais que exploram o território da população brasileira, exaurindo seus solos e recursos hídricos. A comoção social identitária expressa em Correntina apresenta uma nova marca no movimento pelo uso equitativo da água no Brasil. Ela combina justiça no acesso à água e a garantia de uso pelas gerações atuais e futuras.

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Para mais informação: RIBEIRO, W. C.. Conflitos e cooperação pela água na América Latina. São Paulo: PPGH/Annablume, 2013. 350p .

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* Wagner Costa Ribeiro é professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo – Brasil e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

A reforma trabalhista no Brasil: um atentado contra à classe trabalhadora

Flávio Ribeiro de Limai

No dia 11 de novembro de 2017, entrou em vigor a nova lei trabalhista no Brasil. Traçada por um governo interino, em um momento de forte recessão econômica, a reforma trabalhista altera significativamente a estrutura do mercado de trabalho brasileiro, sendo a mais danosa ofensiva à classe trabalhadora brasileira dos últimos anos.

Propagada através de um discurso neoliberal, sob o pretexto de que as relações de trabalho neste país precisavam ser “modernizadas” para que fosse possível gerar mais empregos, essa ofensiva foi imposta em regime de urgência pelo governo Temer à classe trabalhadora, demonstrando, primeiramente, total desprezo pelas questões sociais, e, em segundo, que o governo em vigor preserva os velhos modos de efetivar as políticas de cunho privatista e antinacionalista.

Propulsor de Estado mínimo aos trabalhadores, e máximo aos bancos e aos grandes empresários, Temer exterioriza através de seus pronunciamentos, quem irá se beneficiar com a reforma ao dizer que ela “vem para flexibilizar as relações trabalho”, e assim adaptar as legislações trabalhistas “às necessidades das empresas”. Essas são algumas das declarações pronunciadas por Temer para dar seguimento a um retrocesso de quase um século, momento em que não havia direito trabalhista e proteção social no Brasil.

Ainda assim, ele tenta mascara-las, ao pronunciar que “a reforma está sendo empreendida com fins de gerar empregos”. A fim de nos orientarmos sobre essa falácia de geração empregos, apoiamo-nos nas pesquisas da economista Liana Carleial. Seus argumentos são esclarecedores e indicam que a reforma trabalhista não foi concebida para criar empregos e sim para “flexibilizar as relações de trabalho”, dado que, o que gera emprego “é o desenvolvimento”.

Na mesma direção das reformas trabalhista implementadas na Espanha em 2010 e no México em 2012, a reforma brasileira, vem para alterar o código trabalhista no Brasil – são mais de 100 itens alterados na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Dentre estas alterações, podemos destacar:

  • Prevalência de acordos coletivos sobre a legislação
  • Regulamentação do trabalho intermitente
  • Autorização de gestantes realizando trabalho em espaços insalubres
  • Demissão em comum acordo
  • Terceirização de atividades principais
  • Ampliação do trabalho temporário e em tempo parcial
  • Limitação das condenações por dano moral
  • Criação da figura do “autônomo” como exclusivo
  • Fim da obrigatoriedade da contribuição sindical

Entre tantas outras, que além de danosas aos trabalhadores, enfraquecem os sindicatos e colocam obstáculos na atuação da Justiça do Trabalho.

Isso introduz, potencialmente, novas modalidades de trabalho. O sociólogo Ricardo Antunes nos lembra que são modalidades marcantes deste momento, os trabalhos em espaços compartilhados, trabalhos uberizados, trabalhos em plataformas, trabalhos em tempo parcial, tele trabalho ou mesmo trabalho on-line, trabalho versátil, a “formalização” ilegal dos micro empreendedores individuais, auto emprego, empreendedorismo em massa, prestadores de serviços, troca de trabalho por alimentos ou por acomodação, entre tantos outras modalidades que já vinham sendo implementadas e foram institucionalizadas.

Se no México, um traço marcante da reforma foi o aumento da informalidade, que de acordo com o Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI) passou de 39,2% em 2010 para 57,2% da população ativa mexicana em 2017, no caso brasileiro não seria diferente. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indicam 45,2 % da força de trabalho ativa do Brasil (estimada em 90 milhões) estão inseridos nos moldes da informalidade.

A taxa de desemprego também vem acompanhando as tendências observadas em países que implementaram a reforma trabalhista anteriormente. Caso que pode ser observado nas bases estatísticas da Instituto Nacional de Estatística (INE), que demonstram a diminuição dos postos de trabalho com carteira assinada na Espanha, sendo que em 2009 apresentava 21,9%, e passou a apresentar em 2015, cerca de 26,5%. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do Brasil, aponta um aumento de 9 milhões em 2016 para aproximadamente 13,8 milhões em 2017.

É preciso salientar que as tendências não são nada positivas para os próximos anos. A professora de Direito do Trabalho, Aldacy Rachid Coutinho indica que devemos ter em conta, ao contrário do que indica Temer e seus parlamentares, que a reforma representa maior disparidade de renda, mais desigualdade social e precarização das relações de trabalho.

A reforma trabalhista brasileira, reorienta também, a questão da habitação social.

Por consequência, ao alterar os direitos trabalhistas, as reformas subvertem a dinâmica de produção e de reprodução do espaço, acirrando assim, sugere a geógrafa Arlete Moysés Rodrigues, a contradição entre o processo de produção social do espaço e o processo de apropriação.

A partir deste panorama, podemos indicar que a reforma trabalhista que desmantela o Estado social, tem o mundo do trabalho como principal alvo. Nestes termos, até mesmo para chamar a coisa por seu verdadeiro nome, estamos com aqueles que identificam a reforma com como um retrocesso, como uma contrarreforma.

Em suma, a reforma endossou a fórmula de uma face mais avassaladora do neoliberalismo no Brasil, a qual, suas consequências avassaladoras, que sequer, estão sendo mensuradas. É tempo de voltar aos questionamentos do professor Horário Capel: “O que as gerações futuras pensarão sobre nossas ações atuais?”. Afinal, somos nós quem devemos ajudar a construir o futuro. Para tanto, nos resta uma saída, que deve vir através da organização, das lutas e da resistência.

Para mais informações 

CAPEL, Horário. La historia, la ciudad y el futuro. Revista Scripta Nova (Barcelona), Vol. XIII, p. 1-40, 2009.

ANTUNES, Ricardo. Precariado do Brasil, uni-vos. Disponível em: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,precariado-do-brasil-uni-vos-reforma-de-temer-diminuira-direitos-trabalhistas-diz-sociologo,10000086549. Acesso em: 10 de novembro de 2017.

LIMA, Flávio Ribeiro. Contradições do trabalho informal. In. COUTINHO, Aldacy Rachid (org.). Anais do encontro nacional da rede Renapedts. Florianópolis: Editora Empório do Direito, p. 367-377, 2016.

RODRIGUES, Arlete Moysés. Propriedade Fundiária Urbana e Controle Socioespacial. Revista Scripta Nova (Barcelona), Vol. XVIII, p. 1-16, 2014.

iGeógrafo e Discente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná (Brasil).

Indicação de imagem:

Título: votação da Lei da Reforma Trabalhista, Fonte: Senado Federal
Título: votação da Lei da Reforma Trabalhista, Fonte: Senado Federal

INTEGRAÇÃO REGIONAL EM CIDADES GÊMEAS: TURISMO NAS FRONTEIRAS

Edson Belo Clemente de Souzai

Introdução

A tríplice fronteira formada por Brasil (BR), Paraguai (PY) e Argentina AR), Figura 1, não é apenas uma união de limites territoriais e políticos, é também um espaço dinâmico de relações diversas.

O artigo tem o objetivo de analisar a região fronteiriça entre Brasil, Paraguai e Argentina sob o ponto de vista do turismo, em particular. Para tal objetivo, trata-se aqui de considerar o fluxo de visitantes dos grandes atrativos ali existentes, nomeadamente: Parque Nacional do Iguaçu, Parque Nacional del Iguazú, Ruínas Jesuíticas e Itaipu Binacional.

Figura 1: Localização da Tríplice Fronteira Brasil, Paraguai e Argentina
Figura 1: Localização da Tríplice Fronteira Brasil, Paraguai e Argentina

Características dos atrativos turísticos

O turismo nas áreas fronteiriças, sobretudo aqueles atrativos abaixo, envolvem relações decorrentes de interações sociais que ocorrem entre os atores sociais dessas áreas, podendo estar articulados por meio de diferentes níveis sociopolíticos (federal, estadual, municipal e de representatividade da sociedade civil – com as respectivas equivalências em países vizinhos) e com grande potencial de se efetivar em cidades gêmeas.

Em se tratando mais especificamente das características das cidades de fronteira, esses espaços apresentam um caráter ambíguo, pois ao mesmo tempo que delimitam territórios distintos, permitem também o vínculo e o contato constante entre as populações, em maior ou menor grau.

Parque Nacional do Iguaçu

A área das Cataratas do Iguaçu é um conjunto de cerca de 275 quedas de água no rio Iguaçu, área localizada entre o Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, Brasil, e o Parque Nacional Iguazú, em Misiones, Argentina, fronteira entre os dois países. As áreas de ambos os parques nacionais são contínuas entre si e, somadas, totalizam de 250 mil hectares de floresta subtropical.

Em 2015, o número de visitantes no Parque Nacional do Iguaçu foi de 1.642.093, de 172 nacionalidades. Essa visitação é a maior já registrada na unidade de conservação. Os brasileiros lideram o ranking, com 916.995 visitantes. Na sequência dos países com mais representatividade vem, pela ordem, Argentina, Paraguai, Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Peru e Japão.

Ruínas Jesuíticas

A comunidade missioneira busca no turismo uma alternativa para a melhoria da qualidade de vida de sua população, pois acredita que a atividade turística pode ser um instrumento eficaz de crescimento socioeconômico, podendo também contribuir para a preservação dos sítios arqueológicos que integram o conjunto patrimonial regional. Assim, nas últimas décadas foram criados programas e projetos em prol do desenvolvimento do turismo regional, todos eles objetivando resgatar as obras realizadas pelos jesuítas-guarani, divulgar a história das Missões, consolidar a região como um Polo Turístico Internacional e, principalmente, contribuir para o desenvolvimento e integração regional.

Itaipu Binacional

Sobre a procedência dos visitantes da Itaipu, desde o início das visitações, em 1977, constata-se que os brasileiros, os argentinos e os paraguaios são a maioria, com 49, 21 e 15 por cento, respectivamente. Isso se deve, além da proximidade, a uma iniciativa de preços diferenciados aos vizinhos fronteiriços. Tal medida tem sido aspecto favorável para uma integração entre esses povos, irmanados não somente pela cultura latino-americana, mas também por laços fortes de serviços aferidos pelo turismo.

Figura 2: Percentual de diferentes nacionalidades que visitam a Itaipu Binacional
Figura 2: Percentual de diferentes nacionalidades que visitam a Itaipu Binacional

Fonte: Itaipu Binacional. Elaboração: Rafael Folmann dos Santos

Um grande potencial para transformar o territorio

A organização da estrutura socioespacial na zona de fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina abriga espaços contíguos, mas as populações vivem em realidades distintas, distinções oriundas de um processo histórico diferencial de evolução das três sociedades.

A Itaipu é um “divisor de águas” na história do desenvolvimento urbano desses municípios, pois promoveu significativas alterações sob o ponto de vista urbano e econômico, implicando transformações espaciais e configurando na região uma nova realidade sob um novo cenário pelo incentivo da atividade turística como forma de produção desse espaço.

Além da Itaipu, as Cataratas do Iguaçu e do Iguazú, como também as Ruínas Jesuíticas, desempenham importante potencial de desenvolvimento turístico para os três países: Brasil, Paraguai e Argentina. Há, porém, entraves que têm dificultado um alcance de melhor aproveitamento, pois se fazem necessários acordos supranacionais para que essa região, cujos territórios turísticos estão em áreas contíguas, tenham programas e/ou políticas integradoras.

Todos os atrativos patrimoniais, bem geridos, podem transformar o território onde está inserido. A integração regional nessa tríplice fronteira em parte já é uma realidade. O turismo que envolve os três países atrai serviços que polarizam ações em prol do desenvolvimento de todos. A implantação de uma política de integração não resolverá tudo, mas atenua debilidades administrativas, financeiras, técnicas, econômicas, redução de custos e hábitos de ações e políticas comuns ao invés das individualistas.

O turismo poderá ser um vetor importante para o desenvolvimento econômico na perspectiva de que o mesmo se posicione como uma atividade central para um planejamento transfronteiriço, integrado e regionalizado em nível supranacional, alcançando um novo grau de institucionalização e cooperação.

Os atrativos turísticos apresentados ao longo do artigo são uma demonstração de integração possível de serem consolidados entre os três países e as cidades gêmeas são o locus privilegiado para promover a cooperação internacional e o desenvolvimento regional. No bojo do desenvolvimento regional, evidenciado no número de turistas que os visitam, faz-se necessário um planejamento integrado de desenvolvimento para que todos os recursos sejam otimizados e melhor aproveitados.

O fator planejamento é a perspectiva de uma equidade política de Estado entre os três países, que se estabelece em uma nova lógica de interferir nos territórios turísticos. Os investimentos alavancados poderão ser aplicados em infraestrutura e serviços, assegurando mais qualidade na oferta turística.

As cidades gêmeas se tornam um caso específico de estudo, onde mesmo não tendo um governo comum, as relações de vizinhança e complementaridade fazem com que reações em diversos setores que ocorrem em uma cidade, impactem de certa maneira a outra, vizinha, e vice versa. A relação de vizinhança tem contribuído naturalmente para a troca, para o intercâmbio de informações e culturas, com possíveis influências no espaço urbano. Portanto, é importante um Planejamento Urbano e Regional com políticas públicas mais específicas para as cidades de fronteira, região formada pelo nacional e internacional, mas que possui uma identidade local única.

Para maiores informações:

SOUZA, Edson Belo Clemente de Souza. O turismo como integrador regional em cidades trigêmeas: Foz do Iguaçu (Brasil), Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Iguazú (Argentina). In Revista Cuadernos de Geografìa, v. 26, p. 355-371, 2017.

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Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual de Ponta Grossa (Estado do Paraná – Brasil). Correio eletrônico: Edson.belo@uepg.br Orcid.org/0000-0003-3307-0518

Fluxos e experiências de catadores de materiais recicláveis

Ari Rocha da Silva*

Indivíduos que vivem de materiais descartados no lixo são cada vez mais presentes em diferentes cidades do mundo. Podem ser vistos catando de diversas formas, coletando materiais em lixeiras ou jogados nas ruas, em estabelecimentos comerciais e/ou em grandes depósitos de lixo. Torna-se cada vez mais importante compreender as lógicas e ações desses trabalhadores na medida em que se constituem paisagem cotidiana em nossas cidades.

Catador de rua na cidade de Passo Fundo. Abril, 2015 (fonte: acervo do autor)
Catador de rua na cidade de Passo Fundo. Abril, 2015 (fonte: acervo do autor)

Os catadores de materiais recicláveis são parte dos fenômenos de reestruturação do trabalho em ordem mundial e de crises econômicas cíclicas do sistema capitalista. Ou seja, de processos intensos de reconfigurações das lógicas de produção e consumo em escala global e, consequentemente, de novas definições das práticas e participações da mão-de-obra empregada, seja nas indústrias ou no trabalho agrícola. Atribui-se a isso, os fenômenos de migrações e a falta de ocupações laborais a uma parcela populacional expressiva de indivíduos que sofrem as transformações do mercado de trabalho e se tornam responsáveis a ajustarem-se a novas realidades laborais.

No Brasil, dados do Relatório do Instituto de Pesquisa Economica Aplicada destacam que existem 300 mil catadores exercendo esta profissão, sendo apenas 10% deles organizados em cooperativas ou associações de trabalho. Por outro lado, o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) afirma que existem mais de 600 mil catadores distribuídos pelo país, o dobro do que é assinalado pelo IPEA.

Os catadores de materiais recicláveis são parte dos fenômenos de reestruturação do trabalho em ordem mundial e de crises econômicas cíclicas do sistema capitalista.

De qualquer forma, tudo indica uma crescente expansão desta categoria de trabalhadores no Brasil, seja na forma do trabalho informal, onde os catadores trabalham individualmente, sem registro formal ou carteira profissional assinada, ou compondo grupos cooperados de trabalhadores, muitos deles assistidos por uma rede de técnicos de organizações não governamentais a base de algum financiamento público ou política pontual de governo, seja ele municipal, estadual e/ou federal.

Empreendimento familiar de reciclagem em Passo Fundo. Julho, 2015 (fornte: acervo do autor)
Empreendimento familiar de reciclagem em Passo Fundo. Julho, 2015 (fornte: acervo do autor)

Há que se considerar, dessa forma, que estes trabalhadores exercem uma categoria emergente e particular nas formas de trabalho. São identificados por alguns governos ou população, em geral, como elementos fundamentais das políticas de revigoramento do meio ambiente e agentes de preservação ambiental; por outros, são considerados sujeitos inexpressivos e marginais que atrapalham a mobilidade urbana e tornam o visual da cidade contrastante e empobrecido. Evidentemente que tais concepções são matizadas por ideologias das formas de se organizar uma cidade e de sua funcionalidade, isto é, a quem ela se destina precipoamente.

Contudo, os catadores não são meros produtos das estruturas sociais e econômicas, são sujeitos plurais e carregados de disposições sociais amealhadas ao longo de suas trajetórias de vida. Não se limitam apenas a catação de materiais na medida em que são permeáveis a aproveitarem as oportunidades e criar outras possibilidades de atuação na sociedade a partir das relações que desenvolvem nela. Assim, não podemos definí-los apenas como sujeitos precarizados e produto de uma lógica econômica perversa, mas como atores ativos e integrados às sociedades em que vivem e trabalham.

… catadores … são sujeitos plurais e carregados de disposições sociais amealhadas ao longo de suas trajetórias de vida.

O texto abaixo, para maiores informações, destaca determinadas práticas de organização do trabalho de catadores vinculados a suas famílias, sendo essa também uma instituição usada tática e estrategicamente pelos catadores para conformar as suas ações e divisões do trabalho social. Denota-se o quanto as ações dos indivíduos é permeada por delineamentos que estão até mesmo fora da lógica, eminentemente, funcional da atividade laboral que exercem, pois suas ações também correspondem a valores e representações que configuram suas disposições sociais nos fluxos de outras experiências, seja na família, nos grupos comunitários ou nas relações mais amplas que tais atores estabelecem e que ajudam a configurar os espaços de suas práticas e a cidade como um todo.

Para maior informação:

SILVA, Ari. R. da. Família e poder nos espaços de trabalho e das trajetórias urbanas. Revista NEP (Núcleo de Estudos Paranaenses) Curitiba, v.2, n.2, pp. 447-64, maio 2016. http://revistas.ufpr.br/nep/article/view/47002

Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis http://www.mncr.org.br/

IPEA – Situação social das catadoras e dos catadores de material reciclável e reunilizável http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/situacao_social/131219_relatorio_situacaosocial_mat_reciclavel_brasil.pdf

* Ari Rocha da Silva é Sociólogo. Doutorando em Ciências Sociais pelo PPG em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, Brasil.

Ficha bibliográfica:

SILVA, A. R. Fluxos e experiências de catadores de materiais recicláveis.

Supressão da geografia do ensino médio brasileiro – crônica de uma morte anunciada

Em 16 de fevereiro de 2017, foi aprovada a medida provisória 746/2017 (mp746) que suprimiu a disciplina de geografia do ensino médio (bachillerato/espanha, high school/eua) das escolas brasileiras, disponibilizando-a como optativa numa organizacão denominado de “itinerários formativos”, e que dependerá da infraestrutura da escola, do número de professores disponíveis, e do projeto pedagógico.

A mp/746 é uma emenda na lei de diretrizes e bases da educação nacional (ldbs), lei 9.394, aprovada em 1996, e um de seus objetivos foi mudar a lei 11.161 que orienta o fundo nacional de desenvolvimento da educação básica (fundeb), responsável pela destinação das verbas na educação.

Desde 1996 implementava-se uma reforma educacional que envolveu a aprovação e publicação de leis, resoluções, pareceres, publicação de propostas curriculares e reorganização das disciplinas que compunham o currículo escolar. Como as reformas educacionais saem dos gabinetes do ministério da educação (mec) e demoram muito para chegar à sala dos professores sabia-se desde 1996 que geografia permaneceria na área de ciências humanas e sociais (com história, ciências sociais, filosofia), mas não se sabia exatamente como e, portanto, caiu no esquecimento.

As entidades que representam a geografia brasileira e que se manifestaram: associação dos geógrafos brasileiros (agb), associação nacional de pós-graduação e pesquisa em geografia (anpege), teceram críticas às propostas pedagógicas presentes na nova reforma do ensino médio.

Nossas preocupações dirigem-se especificamente ao ensino de geografia, que quase deixou de existir a partir dessa reforma.

Porque nossa preocupação volta-se a essa supressão de geografia no ensino médio? Por que ela faz parte de um pacote que muda a abordagem geográfica presente no ensino. Retira-se um ensino, que embora distante, tinha suas referências na geografia francesa, com destaque para o trabalho de campo e para a abordagem regional; e implementa-se um ensino referenciado pelos conselhos de geografia dos estados unidos e europa, de abordagem sistêmica e técnica, adequada a um ensino profissionalizante.

A proposta implementada remete a década de 1950, a uma política da organização das nações unidas para a educação, a ciência e a cultura (unesco), denominada de educação geográfica. A unesco, por meio do conselho nacional para educação geográfica (ncge), com base na escola primária norteamericana produziu o livro de “referência para o ensino geográfico”, que orientaria a educação geográfica. Rechaçada na década de 1960 e 1970, o que chegou desta proposta no brasil, principalmente depois da década de 1990, resume-se a cartografia escolar, e a utilização de diversos recursos didáticos que não são exclusivos da geografia: recursos tecnológicos, culturais, pedagógicos – atividades de localização e orientação.

Se para os anos iniciais do ensino fundamental sugeriu-se a educação geográfica; para os anos finais sugeriu-se a educação ambiental: conteúdo voltado para ciências da terra, referenciados pela ecologia, biologia e geologia, dedicados a questões ambientais e sustentáveis. A educação geográfica dialoga com a pedagogia; a educação ambiental dialoga com as ciências da terra. A geografia, que decodifica o espaço físico para as ciências sociais dialogará com quem?

Distrito de Floriano, Maringá, Paraná
Distrito de Floriano, Maringá, Paraná

Considerando as mudanças provocadas por essa reforma educacional, a questão ambiental, sustentabilidade, migração e trabalho passaram a orientar as abordagens da educação geográfica e/ou da geografia. Suprimiram os conteúdos de geografia do ensino médio; e os conteúdos de geografia dos nove anos que compõe o ensino fundamental são de educação geográfica.

A unidade da geografia, estabelecida pela relação sociedade/natureza não explicaria mais a transformação da paisagem ou do espaço geográfico? A natureza deve ser substituída pelo ambiente? A interdisciplinaridade da geografia, presente em seu arcabouço teórico, oriundo do debate clássico estabelecido entre franceses e alemães não responderia às questões ambientais e sociais? Esta reforma emerge de uma superação teórica ou de subsídios a políticas econômicas internacionais?

A questão ambiental discute um quadro já dado; resultado da ação humana, e que a geografia, com suas escalas de análise, suas abordagens física e humana, as relações que estabelece entre as dinâmicas da sociedade e da natureza contribuiria não só para preservação e sustentabilidade, mas também para prevenção, resultado de uma formação geográfica que contribuiria para aumentar o equilíbrio entre os aspectos da natureza, que em um país tropical são frágeis; e diminuir as diferenças sociais que resultam em enormes contradições.

Para maio­res informações:

DEFFUNE, Glaucia; LIMA, Maria das Graças de. (Org.) Da geografia que se faz à geografia que se quer – muitos caminhos a percorrer. Maringá: EDUEM. 2013.

Maria das Graças de Lima, professora do Departamento de Geografia, da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

REFORMA DO ENSINO MÉDIO NO BRASIL: desmonte na educação e inércia do enfrentamento retórico

por Denis Castilho

No dia 17 de fevereiro de 2017 o texto final da Reforma do Ensino Médio foi publicado no Diário Oficial da União. Com essa reforma, apenas matemática, língua portuguesa e língua estrangeira (inglês) serão disciplinas obrigatórias nos três anos de Ensino Médio do Brasil. O currículo ficará dividido em duas partes. Uma primeira será comum a todos os estudantes e outra dividida em “itinerários formativos”, que se desdobram em: 1) linguagens e suas tecnologias; 2) matemática e suas tecnologias; 3) ciências da natureza e suas tecnologias; 4) ciências humanas e sociais aplicadas; 5) formação técnica e profissional.

Ao contrário do que o governo brasileiro vem divulgando, os itinerários formativos não serão necessariamente escolhidos pelo estudante. Serão contemplados conforme as condições da escola em ofertá-los. A premissa de escolha, especialmente na rede pública, portanto, é um engodo – uma ficção. Diante do déficit histórico de estrutura física e de recursos humanos nas escolas públicas brasileiras, não é difícil prever um distanciamento ainda maior entre os sistemas público e privado.

Com base no texto, disciplinas como geografia, história e química serão diluídas nos respectivos itinerários formativos. A diluição, portanto, não afetará apenas as ciências humanas. Além disso, no itinerário “formação técnica e profissional”, não haverá exigência de formação em licenciatura para a prática docente. De acordo com a Reforma, “profissionais com notório saber reconhecidos pelos respectivos sistemas de ensino poderão ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional”. Dentre tantos absurdos dessa Reforma, portanto, três se destacam: 1) a diluição de disciplinas estruturantes; 2) a falsa premissa da escolha no sistema público; e 3) o atestado de notório saber.

A diluição e diminuição de ciências que possuem uma rica fundamentação teórica construída ao longo da história, aprofundará ainda mais os problemas atinentes à formação básica dos jovens. Não menos impactante serão os danos epistemológicos e os prejuízos no processo de construção de conhecimentos. O Ensino Médio brasileiro se transformará em um líquido indigesto e carregado de conteúdos sem nexos,isso porque um professor de biologia, por exemplo, não é formado para trabalhar com química, e vice e versa. A aberração será ainda maior com os pseudoprofessores e seus “obtusos saberes”.

A formação do professor é indispensável porque há saberes e competências que são específicos da docência. Ensinar bem uma matéria não requer apenas saber o conteúdo – é preciso compreender o complexo processo ensino-aprendizagem. Por isso, como aceitar um “notório saber” desprezando a formação docente? Conselhos e representações de categorias profissionais vinculadas a área da saúde admitiriam algo similar em seus ambientes profissionais? Evidente que não. Isso demonstra claramente a visão que este projeto tem de escola, de educação e de sociedade. Além dos problemas didáticos, não resta dúvida que isso abrirá ainda mais brechas para contratações emergenciais, minando concursos e deslegitimando o sentido dos cursos de licenciatura.

Essa Reforma não tem nada de ingênua. Ela deixará o campo aberto à “escola sem partido”, um projeto de lei no Brasil que objetiva impedir a discussão ideológica e a liberdade de expressão no ambiente escolar. Engana-se quem acredita que os prejuízos serão específicos à essa ou àquela disciplina. O prejuízo abrange a Educação como um todo. Atinge especialmente os estudantes da escola pública, que terão sua formação afetada e seu ingresso na Universidade Pública ainda mais dificultado. Pior que isso é o sentido da própria formação, que inevitavelmente se esvaziará de fundamento, de crítica e de coerência.

Levantar essa previsão de desmonte na educação, no entanto, não significa que deixo de reconhecer os problemas atuais. Pelo contrário. Ocasiões como essa servem também para ampliar o debate sobre a situação da educação e, evidentemente, sobre a formação do professor. Servem, inclusive, para revermos o modo como discutimos o ensino e como a escola real aparece em nossos debates.

Se observarmos o modo como diferentes disciplinas expandiram seus cursos de graduação em diversos países do mundo, não é difícil constatar que muitos foram criados para atender as demandas do ensino escolar. No Brasil não foi diferente. Isso vale para cursos de geografia, história e, não muito distante, de física, biologia e química, que também possuem forte vínculo com a formação de professores. A expansão desses cursos geralmente é acompanhada pela especialização característica de cada ciência e também pela disseminação de laboratórios e/ou grupos de pesquisas. Poucos, no entanto, são voltados para o ensino. A maioria sequer considera a transversalidade da formação docente em suas pesquisas e práticas, mesmo estando alocados em um curso de licenciatura.

A escola e o mundo real da educação, nesse sentido, vão escapando das teorias e se tornando cada vez mais abstratos. Diante disso, como defender uma escola se em nossas discussões ela pouco aparece ou aparece de maneira abstrata? Isso tudo demonstra que a luta também deve acontecer no interior de nossas próprias instituições. É necessário questionar o sentido político dessa reforma, mas também o modo como o ensino escolar e a formação de professores são pautados na graduação. Ou construímos um canal de diálogo nesse sentido ou simplesmente seremos comandados ainda mais por interesses indiferentes à educação.

O modo como a Reforma do Ensino Médio foi aprovada denota o autoritarismo do governo, mas também a nossa incapacidade de enfrentamento no tempo correto. No final de 2016 os estudantes ocuparam instituições e protestaram. Todavia, além de serem desqualificados por parte de seus próprios professores, tiveram sua mobilização enfraquecida até mesmo por sindicados da categoria. A ocasião era propícia a uma efetiva mobilização nacional, mas isso não aconteceu. O resultado não poderia ser diferente: a tácita imposição de um projeto que escancaradamente vem entregando o país aos interesses das grandes corporações está sendo imposta sem a devida resistência.

O momento suscita organização e construção de uma estratégia de luta. O contraponto deve ser protagonizado não apenas por professores de determinada disciplina, mas por todos. A Reforma do Ensino Médio do Brasil faz parte de um conjunto de ações que pretendem minar a formação básica e tolher o pensamento crítico nesse país. Isso, como todos sabem, foi feito sem debate, sem consulta e sem representatividade. Por esse motivo, ou construímos coletivamente uma estratégia de ação, ou perderemos espaços que dificilmente serão reconquistados. Ou promovemos um amplo debate com participação de diferentes sujeitos da educação e setores da sociedade, ou deixaremos a formação dos jovens brasileiros ser ainda mais abalada. Ou lutamos agora, ou cairemos, mais uma vez, na inércia da retórica e no labirinto das lamentações.

Para mayor información:

CASTILHO, Denis. Reforma do Ensino Médio: desmonte na educação e inércia do enfrentamento retórico. In: Pragmatismo Político. [En línea]. 21 de fevereiro de 2017. <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/reforma-do-ensino-medio-desmonte-educacao-inercia.html>

BRASIL. Diário Oficial da União 17 fev.2017. [En línea]. <https://goo.gl/6W0Ad1>

Denis Castilho es geógrafo y profesor de la Universidade Federal de Goiás (Brasil).

Mobilidade populacional e educação superior no Brasil: o caso do norte fluminense

Jéssica Monteiro da Silva Tavares1

Elzira Lúcia de Oliveira2

Resumo

A localização da população e os processos de mobilidade espacial são considerados elementos importantes na constituição do espaço urbano. Entre os processos de mobilidade espacial, destaca-se o papel dos deslocamentos pendulares, em especial, os movimentos realizados para fins de estudo que, da mesma maneira que são impulsionados pela dinâmica e demanda da economia, também podem produzir relevante impacto sobre a organização das cidades que experimentam uma integração na escala regional. Embora o principal motivo dos deslocamentos pendulares seja a procura por trabalho, a busca por oportunidades educacionais também é motivação de deslocamentos populacionais. O padrão espacial da localização dos estabelecimentos de ensino, de forma concentrada em determinados espaços, para níveis de ensino médio e superior, leva à necessidade de deslocamentos frequentes entre residência e unidade de ensino por parte de um amplo número de estudantes. O objetivo geral desse trabalho é analisar os movimentos populacionais pendulares por motivo de estudo de nível superior na região Norte do Estado do Rio de Janeiro, principalmente em direção ao município de Campos dos Goytacazes, historicamente reconhecido como polo de educação superior na região. Para investigar a questão se utilizou de abordagem predominantemente quantitativa, utilizando o Censo Demográfico do IBGE de 2010 e do Censo do Ensino Superior do INEP como fontes de dados secundários. Além de identificar os fluxos de origem, identificar-se-á também, de forma resumida, o perfil desses estudantes pendulares. Para entender a centralidade do município de Campos dos Goytacazes na oferta de serviços de ensino, foi calculado o Quociente Locacional (QL) no setor de ensino dos municípios da região, bem como dos municípios classificados pelo IBGE no mesmo nível de hierarquia urbana de Campos dos Goytacazes. Adicionalmente, foi calculado o Índice de Eficácia da Pendularidade (IE) para os municípios da região Norte fluminense. O recorte espacial deste estudo, a região Norte do estado do Rio de Janeiro, tem passado por profundas modificações socioeconômicas e territoriais após a descoberta e exploração de petróleo na Bacia de Campos. O município de Macaé, base operacional da Petrobrás, quadruplicou, passando de 47.221 habitantes em 1970 para 206.728 em 2010. O adensamento populacional e a valorização do solo urbano têm espraiado os efeitos da indústria petrolífera para os municípios limítrofes, como também tem produzido fluxos diários entre vários municípios da região e Macaé, em decorrência da grande oferta de trabalho. Por outro lado, a busca por qualificação, visando em grande parte inserção na indústria petrolífera, também tem gerado fluxos entre os municípios, especialmente com destino à Campos dos Goytacazes, que mantém uma oferta regular de ensino profissionalizante de nível médio e nível superior, por meio de instituições públicas e privadas. Adicionalmente, os recursos de royalties e participações especiais que os municípios impactados direta e indiretamente pela indústria do petróleo recebem, conferem a esses municípios certa folga orçamentária em relação aos demais, com poucas restrições em relação à alocação desses recursos. Sendo assim, os municípios contemplados com esses recursos, especialmente os menores, na ausência de oferta de serviços educacionais no local, fornecem bolsas de estudos e transporte para os residentes estudarem em outro município, geralmente em Campos dos Goytacazes, em função de uma oferta diferenciada na região. A indústria petrolífera sediada em Macaé desloca o eixo dinâmico regional de Campos dos Goytacazes para Macaé caracterizando o atual ciclo da economia do Norte Fluminense, baseado na indústria extrativista do petróleo, responsável pela dinâmica econômica da região. Sendo assim a geoeconomia que se desenha é a centralidade de Macaé em termos de localização industrial, com claros reflexos nos municípios vizinhos, a exemplo de Rio das Ostras. Neste contexto, Campos dos Goytacazes assume centralidade na oferta serviços educacionais para qualificação de mão de obra para a indústria petrolífera. Constatou-se que os deslocamentos populacionais para fins de estudo na região Norte Fluminense ocorrem predominantemente em direção a Campos dos Goytacazes que exerce papel de centro regional, atraindo estudantes de várias partes do estado do Rio de Janeiro e, inclusive de outros estados do Brasil.

Palavras-chave: Movimento Pendular. Estudo. Região Norte Fluminense. Oportunidades Educacionais. Campos dos Goytacazes.

Para mais informações: https://espacoeconomia.revues.org/2335

1 Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora de Geografia na Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC). E-mail: jessicamonteirost@gmail.com

2 Doutora em Demografia (UFMG). Professora Adjunta IV na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: elziralucia@id.uff.br

A Paisagem Cultural: múltiplas interpretações nas políticas de preservação

por Margareth de Castro Afeche Pimenta

Enquanto privilegiam meios tradicionais em nível mundial, no Brasil as interpretações acerca das paisagens culturais são variadas, deixando escapar sem proteção setores socialmente fragilizados, mas ricos culturalmente, que deveriam ser foco de políticas específicas. Precisar as acepções históricas de cultura talvez contribua para direcionar políticas de preservação, mas também inseri-las numa visão maior de projeto societário.

As paisagens culturais são a oportunidade de estabelecimento da proteção conjunta do ambiente com as formas tradicionais de expressão cultural. Após duas décadas de seu estabelecimento como politica patrimonial, a paisagem cultural apresenta, entretanto, resultados bastante desiguais, tanto em relação aos critérios quanto à distribuição espacial dos bens mundiais preservados. A paisagem foi considerada objeto de proteção bem antes da Convenção do Patrimônio Mundial de 1992, em 1962 e 1972. Por que, então, qualificar a paisagem como cultural 30 anos mais tarde? Impunha-se a necessidade de uma elaboração mais afinada, decodificando-se os termos. Apesar desses esforços, os debates trouxeram uma expansão (e indefinição) inusitada no Brasil. A deriva conceitual, num quadro sempre presente de limitação dos recursos, significa a exclusão de setores relevantes, com perdas irreparáveis.

Um dos caminhos para se recolocar a questão talvez esteja nas múltiplas significações do termo ‘cultura’. Um breve percurso de suas trajetórias históricas, considerando-se descontinuidades e recuperações, pode contribuir para ajustar os termos da preservação patrimonial. Do cultivo das terras na Antiguidade, Cícero transforma seu significado, a partir do estabelecimento da correlação entre plantio, o ato de cultivar, e o espírito humano. No mesmo sentido, Filão inspira-se em Platão quanto ao ‘homem interior”, cultivado, como o lavrador que nutre as boas espécies. O termo ‘cultura’ dispersa-se nas canções de gesta medieval, mantendo a acepção de cultivo até o século XVI, quando se inclui a ‘cultura da língua’ oudo espírito, primeiros passos rumo ao seu conteúdo civilizatório, que adviria no século das Luzes.

A partir do século XVIII, explicita-se cultura, também, com um sentido “figurado”, do cuidado nas artes e no espírito, incluindo o aperfeiçoamento pessoal. Voltaire e Rousseau almejam o homem esclarecido. Ser cultivado derivaria, portanto, de um processo de elaboração. Cultura transforma-se em refinamento; sua transmissão permitiria o aprimoramento da humanidade. Aparece como um processo pessoal, mas também social. Tratava-se, portanto, de um projeto civilizatório.

Paisagem rural no município de Urussanga no Estado de Santa Catarina, Brasil.
Paisagem rural no município de Urussanga no Estado de Santa Catarina, Brasil.

Somente na segunda metade do século XVIII Kultur torna-se usual na Alemanha, com diversos significados: liberdade de espírito frente aos preconceitos; distinção e fineza nas maneiras; estágio de evolução social, opondo-se à barbárie dos povos selvagens. Visava-se atingir a erudição, capaz de permitir os avanços científicos, mas também a habilidade na utilização dos instrumentos. O progresso material teria importância tanto quanto a evolução das ciências abstratas. As ideias de Kant assemelham-se ao pensamento de Herder e Schiller, sobretudo no sentido progressivo do aperfeiçoamento humano. Como a natureza teria atribuído o mínimo ao homem, haveria a escalada da existência singela à cultura, que se basearia no valor intrínseco do homem, seu valor social.

Somente com Goethe, cultura designa os traços distintivos de um povo determinado. Suas viagens oferecem uma nova visão de mundo, centrada na formação do homem interior, Bildung, onde discerne o indivíduo e seu meio, com o qual partilha hábitos comuns, gostos e formas de pensar. Aqui se constitui Kultur, ou seja, cultura no plural, distinguindo as sociedades por características específicas.

Mesmo os grandes contributos – cultura pessoal ou social – deixariam transparecer os traços culturais. A cultura da nação aparece, também, como legado, colocando a noção de herança e de acumulação histórica. Salientam-se as contribuições particularizadas dos diferentes grupos culturais, bem como a necessidade de transmissão dos saberes e objetos concebidos pela humanidade.

Ter-se-ia que esperar o século XIX para uma política mais sistemática de preservação do patrimônio material, mas também para o surgimento de uma disciplina, a antropologia, centrada sobre grupos humanos e sua diferenciação. Foi definida por TYLOR (1871) como um complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, costumes e outros hábitos. A Unesco propõe-se, assim, a valorizar o sentido de cultura para fins societários, englobando as artes e as letras, os modos de vida, os direitos fundamentais, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. Considera os traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos, propondo o aperfeiçoamento humano e cultural. Defende sociedades e grupos em ‘perigo’ de perda de identidades e especificidades. Desenha, assim, um projeto de sociedade, do qual fazem parte grupos heterogêneos, quando define o reconhecimento de valores sociais e culturais. O Brasil deveria dedicar atenção maior ao caráter amplo, mas preciso, do conceito e incorporá-lo ao debate de um projeto sócio-espacial, propiciado pelas paisagens culturais.

Para maiores informações

PIMENTA, Margareth de Castro Afeche. A Paisagem Cultural: múltiplas interpretações nas políticas de preservação. Revista Ateliê Geográfico, Vol.10, nº2, ago./2016. Disponível em <https://revistas.ufg.br/atelie/article/view/38054>

Margareth de Castro Afeche Pimenta é Arquiteta e Urbanista. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.