REFORMA DO ENSINO MÉDIO NO BRASIL: desmonte na educação e inércia do enfrentamento retórico

por Denis Castilho

No dia 17 de fevereiro de 2017 o texto final da Reforma do Ensino Médio foi publicado no Diário Oficial da União. Com essa reforma, apenas matemática, língua portuguesa e língua estrangeira (inglês) serão disciplinas obrigatórias nos três anos de Ensino Médio do Brasil. O currículo ficará dividido em duas partes. Uma primeira será comum a todos os estudantes e outra dividida em “itinerários formativos”, que se desdobram em: 1) linguagens e suas tecnologias; 2) matemática e suas tecnologias; 3) ciências da natureza e suas tecnologias; 4) ciências humanas e sociais aplicadas; 5) formação técnica e profissional.

Ao contrário do que o governo brasileiro vem divulgando, os itinerários formativos não serão necessariamente escolhidos pelo estudante. Serão contemplados conforme as condições da escola em ofertá-los. A premissa de escolha, especialmente na rede pública, portanto, é um engodo – uma ficção. Diante do déficit histórico de estrutura física e de recursos humanos nas escolas públicas brasileiras, não é difícil prever um distanciamento ainda maior entre os sistemas público e privado.

Com base no texto, disciplinas como geografia, história e química serão diluídas nos respectivos itinerários formativos. A diluição, portanto, não afetará apenas as ciências humanas. Além disso, no itinerário “formação técnica e profissional”, não haverá exigência de formação em licenciatura para a prática docente. De acordo com a Reforma, “profissionais com notório saber reconhecidos pelos respectivos sistemas de ensino poderão ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional”. Dentre tantos absurdos dessa Reforma, portanto, três se destacam: 1) a diluição de disciplinas estruturantes; 2) a falsa premissa da escolha no sistema público; e 3) o atestado de notório saber.

A diluição e diminuição de ciências que possuem uma rica fundamentação teórica construída ao longo da história, aprofundará ainda mais os problemas atinentes à formação básica dos jovens. Não menos impactante serão os danos epistemológicos e os prejuízos no processo de construção de conhecimentos. O Ensino Médio brasileiro se transformará em um líquido indigesto e carregado de conteúdos sem nexos,isso porque um professor de biologia, por exemplo, não é formado para trabalhar com química, e vice e versa. A aberração será ainda maior com os pseudoprofessores e seus “obtusos saberes”.

A formação do professor é indispensável porque há saberes e competências que são específicos da docência. Ensinar bem uma matéria não requer apenas saber o conteúdo – é preciso compreender o complexo processo ensino-aprendizagem. Por isso, como aceitar um “notório saber” desprezando a formação docente? Conselhos e representações de categorias profissionais vinculadas a área da saúde admitiriam algo similar em seus ambientes profissionais? Evidente que não. Isso demonstra claramente a visão que este projeto tem de escola, de educação e de sociedade. Além dos problemas didáticos, não resta dúvida que isso abrirá ainda mais brechas para contratações emergenciais, minando concursos e deslegitimando o sentido dos cursos de licenciatura.

Essa Reforma não tem nada de ingênua. Ela deixará o campo aberto à “escola sem partido”, um projeto de lei no Brasil que objetiva impedir a discussão ideológica e a liberdade de expressão no ambiente escolar. Engana-se quem acredita que os prejuízos serão específicos à essa ou àquela disciplina. O prejuízo abrange a Educação como um todo. Atinge especialmente os estudantes da escola pública, que terão sua formação afetada e seu ingresso na Universidade Pública ainda mais dificultado. Pior que isso é o sentido da própria formação, que inevitavelmente se esvaziará de fundamento, de crítica e de coerência.

Levantar essa previsão de desmonte na educação, no entanto, não significa que deixo de reconhecer os problemas atuais. Pelo contrário. Ocasiões como essa servem também para ampliar o debate sobre a situação da educação e, evidentemente, sobre a formação do professor. Servem, inclusive, para revermos o modo como discutimos o ensino e como a escola real aparece em nossos debates.

Se observarmos o modo como diferentes disciplinas expandiram seus cursos de graduação em diversos países do mundo, não é difícil constatar que muitos foram criados para atender as demandas do ensino escolar. No Brasil não foi diferente. Isso vale para cursos de geografia, história e, não muito distante, de física, biologia e química, que também possuem forte vínculo com a formação de professores. A expansão desses cursos geralmente é acompanhada pela especialização característica de cada ciência e também pela disseminação de laboratórios e/ou grupos de pesquisas. Poucos, no entanto, são voltados para o ensino. A maioria sequer considera a transversalidade da formação docente em suas pesquisas e práticas, mesmo estando alocados em um curso de licenciatura.

A escola e o mundo real da educação, nesse sentido, vão escapando das teorias e se tornando cada vez mais abstratos. Diante disso, como defender uma escola se em nossas discussões ela pouco aparece ou aparece de maneira abstrata? Isso tudo demonstra que a luta também deve acontecer no interior de nossas próprias instituições. É necessário questionar o sentido político dessa reforma, mas também o modo como o ensino escolar e a formação de professores são pautados na graduação. Ou construímos um canal de diálogo nesse sentido ou simplesmente seremos comandados ainda mais por interesses indiferentes à educação.

O modo como a Reforma do Ensino Médio foi aprovada denota o autoritarismo do governo, mas também a nossa incapacidade de enfrentamento no tempo correto. No final de 2016 os estudantes ocuparam instituições e protestaram. Todavia, além de serem desqualificados por parte de seus próprios professores, tiveram sua mobilização enfraquecida até mesmo por sindicados da categoria. A ocasião era propícia a uma efetiva mobilização nacional, mas isso não aconteceu. O resultado não poderia ser diferente: a tácita imposição de um projeto que escancaradamente vem entregando o país aos interesses das grandes corporações está sendo imposta sem a devida resistência.

O momento suscita organização e construção de uma estratégia de luta. O contraponto deve ser protagonizado não apenas por professores de determinada disciplina, mas por todos. A Reforma do Ensino Médio do Brasil faz parte de um conjunto de ações que pretendem minar a formação básica e tolher o pensamento crítico nesse país. Isso, como todos sabem, foi feito sem debate, sem consulta e sem representatividade. Por esse motivo, ou construímos coletivamente uma estratégia de ação, ou perderemos espaços que dificilmente serão reconquistados. Ou promovemos um amplo debate com participação de diferentes sujeitos da educação e setores da sociedade, ou deixaremos a formação dos jovens brasileiros ser ainda mais abalada. Ou lutamos agora, ou cairemos, mais uma vez, na inércia da retórica e no labirinto das lamentações.

Para mayor información:

CASTILHO, Denis. Reforma do Ensino Médio: desmonte na educação e inércia do enfrentamento retórico. In: Pragmatismo Político. [En línea]. 21 de fevereiro de 2017. <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/reforma-do-ensino-medio-desmonte-educacao-inercia.html>

BRASIL. Diário Oficial da União 17 fev.2017. [En línea]. <https://goo.gl/6W0Ad1>

Denis Castilho es geógrafo y profesor de la Universidade Federal de Goiás (Brasil).