A Selva Urbanizada

Maria Lucia Pires Menezes*

Na Amazônia brasileira 70% de sua população vivem nas cidades. As cidades mais antigas que surgiram no período colonial, em sua totalidade se localizam na beira-rio das áreas inundáveis da planície e que vem resistindo as diversas fases de expansão e retração de sua economia extrativa. Tais cidades em sua maioria não organizaram uma área de influencia espacialmente continua, mas sim estruturada em função dos fluxos de mercadorias, força de trabalho e serviços que circulam através, fundamentalmente, da rede hidrográfica.

O FATO HISTÓRICO COMPROVÁVEL É QUE NA AMAZÔNIA MUITO DE SUAS CIDADES CHEGARAM PRIMEIRO QUE A OCUPAÇÃO RURAL.

As cidades que surgiram mais recentemente à beira das estradas têm sua origem na expansão da fronteira agrícola a partir da construção da rodovia Belém Brasília e dos incentivos fiscais e financeiros proporcionados pelos governos militares, desde os anos 1960. Apesar de seu crescimento em número e em população em todo o seu conjunto urbano, na Amazônia brasileira as cidades não configuram uma rede de cidades diretamente organizada a partir da hierarquia urbana nacional.

Como se explica este aparente paradoxo? Este é o desafio da análise profunda que a geógrafa brasileira Bertha Becker propõem no livro A Urbe Amazônida. A Floresta e a Cidade. É exatamente na Geo-história que estão as razões desta geografia tão peculiar e que para os não especialistas e conhecedores da região é preciso sublinhar que o mapa das cidades, a rede urbana e as centralidades não podem ser entendidas sem que se leve em consideração a morfologia da extensa planície coberta por densa floresta equatorial.

Na verdade, sua história moderna se inicia após o século XVI e até o surto da borracha, na segunda metade do século XIX, ali disputaram domínio as principais potências hegemônicas coloniais e grandes empresas comerciais estrangeiras sobre um imenso território que transborda os domínios brasileiros e conformam os limites internacionais do Brasil com Guiana Francesa, Guiana, Suriname, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia.

CIDADES QUE SURGIRAM EM POSIÇOES ESTRATÉGICAS PARA A PRODUÇÃO EXTRATIVISTA NA SELVA

Este processo determinou que muitas de suas cidades fossem localizadas em posições estratégicas para a logística de armazenagem e comércio do extrativismo e instaladas em confluências de rios. São cidades que surgiram não como núcleos para a expansão das atividades agrárias e sua necessidade de concentração da produção, mas para explorar a produção extrativista do seu entorno e garantir a soberania do Brasil sobre estes territórios.

Com o declínio da borracha o que estas cidades vivem é um novo período onde esta ausente o fator trabalho novo, aquele que desencadeia uma economia local capaz de promover uma cadeia de atividades que junto à herança da economia local pode levar ao desenvolvimento de novas atividades e ao crescente dinamismo urbano. A pesquisa e o conhecimento acumulado levaram a autora a conceituar como “surtos urbanos históricos” o processo que transitoriamente incrementam os núcleos como ponto nodal de fluxos, em função da presença de agentes exógenos e das demandas advindas de relações externas. É sob esta sucessão de surtos econômicos, sem o desenrolar de um processo de crescimento da economia local que as cidades vão paulatinamente entrando em declínio econômico e social.

As razões atrelam-se ao fato que, mesmo em épocas de grande ritmo da atividade econômica, a organização político-administrativa não foi capaz de assegurar serviços sociais, incentivo à economia local e uma infra-estrutura básica e urbana às localidades.

A partir dos anos 70, um novo surto se impõe sobre a Amazônia meridional e de transição para o cerrado, quando a malha rodoviária possibilitou a acessibilidade à expansão do agronegócio. Neste contexto, ocorreu um controle mais efetivo dos agentes urbanos de base financeira e tecnológica, amparados no trabalho temporário e na crescente mecanização da atividade agrária. Surgem novas cidades, crescem antigas cidades. A migração de trabalhadores ocupa as periferias urbanas, redesenhando uma nova geografia que configura e reafirma a expressão cunhada pela autora sobre a Amazônia brasileira como a “selva urbanizada”.

AGENDA PARA UMA EFETIVA POLÍTICA DE DINAMIZAÇÃO DAS CIDADES AMAZÔNICAS

O livro de Bertha Becker é fruto de uma extensa vida de pesquisa sobre a realidade tão peculiar e desafiadora da Amazônia brasileira e que deixa como legado uma agenda para uma efetiva política de desenvolvimento das cidades amazônicas. Para consolidar a inserção das cidades numa rede urbana articulada ao espaço brasileiro e que promova o crescimento local e o bem-estar de seus habitantes propõem que se deva considerar: a inovação industrial e o valor agregado aos produtos locais tendo como objetivo contribuir para a autonomia das cidades; a apropriação do legado dos surtos e a dinamização da economia local; a realização de uma geografia histórica das cidades com o intuito de produzir políticas sociais e econômicas respeitando a configuração étnica, social e cultural de cada cidade; serviços ecossistêmicos que favoreçam a produção, a substituição de importação e assim conduzir o desenvolvimento socioeconômico orientado para a conservação ambiental.

Para mayor infor­ma­ción

Becker, Bertha – A Urbe Amazônida. A Floresta e a Cidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.

* Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora