Jaime Cortesão: escritos e geografias do exílio

Francisco Roque de Oliveira

Nos dias 10 e 11 de Maio de 2018 decorreu na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, o Simpósio Internacional Jaime Cortesão: escritos e geografias do exílio. Tratou-se de uma iniciativa conjunta do CEG-Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e do CHAM-Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, em parceria com a Biblioteca Nacional de Portugal. Esta reunião foi realizada no âmbito das actividades do Projecto de Investigação FCT/CAPES «Saberes geográficos e geografia institucional: influência e relações recíprocas entre Portugal e o Brasil no século XX», desenvolvido no Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, e do grupo de investigação Leitura e Formas de Escrita do CHAM.

Este Simpósio propôs-se reunir os mais recentes resultados da investigação que vem sendo realizada em torno da obra do autor de Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid e da História do Brasil nos velhos mapas. Pretendeu-se também aprofundar o conhecimento sobre os sucessivos contextos de exílio que Jaime Cortesão enfrentou na Europa e no Brasil durante mais de 30 anos, com destaque para aqueles que decorreram na Espanha republicana e no Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950. Esta iniciativa foi ainda pensada como uma oportunidade para reflectir sobre o importante legado de Cortesão enquanto editor e tradutor, assim como para analisar o estado actual dos projectos de edição da sua obra, tanto em Portugal como no Brasil.

A escolha da Biblioteca Nacional de Portugal para local de realização deste Simpósio representou um gesto simbólico. Jaime Cortesão (1884-1960) foi o mais destacado director da então chamada Biblioteca Nacional de Lisboa durante a I República Portuguesa (1910-1926). A partir de 1919, quando foi nomeado para esse cargo, Cortesão teve oportunidade de executar aí um notável trabalho de reorganização administrativa e técnica e – sobretudo – de doutrinação cultural e cívica, tendo sido saneado em 1927, na sequência da instauração da ditadura militar em Portugal. Médico por formação e escritor por vocação, este intelectual multifacetado foi poeta e ficcionista, dramaturgo e escritor de viagens, pedagogo das Universidades Populares das primeiras décadas do século XX e, finalmente, o historiador-geógrafo que realizou a síntese entre a historiografia dos Annales de Lucien Febvre e Marc Bloch e a geografia humana de Camille Vallaux e Jean Brunhes aplicada à história de Portugal e do seu império.

Jaime Cortesão foi também um homem de acção política muito empenhado e, por isso mesmo, sempre muito temido pela ditadura portuguesa. Os atribulados anos da sua permanência em Espanha e França, entre 1927 e 1940, representam a experiência de um dos principais protagonistas de exílio republicano português acossado e disperso entre Madrid, Barcelona, o sul de França e Paris. Banido para o Brasil por ordem de Salazar, em 1940, Cortesão relançou no Rio de Janeiro o magistério e as pesquisas que fizeram dele a mais importante figura da historiografia luso-brasileira do século XX. Regressado definitivamente a Portugal em 1957, foi eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores e proposto como candidato à Presidência da República pela oposição não comunista organizada sob a égide do Directório Democrato-Social, indigitação essa que declinou. Preso uma última vez por motivos políticos quando contava já 74 anos de idade, foi libertado na sequência de uma intensa campanha internacional de protesto encabeçada pela imprensa brasileira. Depois de reinstaurada da democracia em Portugal, Cortesão seria reintegrado na função pública a título póstumo, restituindo-se-lhe então as honras e dignidades de que fora arbitrariamente privado, como se lê no Decreto-Lei 275, de 14 de Agosto de 1980, que determinou esta reparação moral.

Através do estudo de algumas das principais peças da obra de Jaime Cortesão, os participantes neste Simpósio tiveram oportunidade de inquirir aspectos associados à duradoura marca deixada na ciência e na universidade portuguesas por força dos exílios e de toda a série constrangimentos mais discretos, mas nem por isso menos eficazes, impostos pela ditadura à actividade científica e ao saber em geral. Nesse sentido, Cortesão foi também estudado como um protagonista, entre outros, de uma brilhante diáspora política e científica que tem inúmeras afinidades com a diáspora republicana espanhola que se viu obrigada a reinventar-se nas Américas na mesma época, fazendo frutificar aí as suas competências intelectuais e o seu cosmopolitismo. O Simpósio estruturou-se em três mesas distintas, precedidas por uma sessão de abertura e uma conferência inaugural, conforme a sequência que passamos a resenhar.

Usaram da palavra na sessão de abertura os directores dos dois Centros de investigação organizadores – Mário Vale pelo CEG e João Paulo Oliveira e Costa pelo CHAM –, Carlos Kessel, chefe do Setor Cultural da Embaixada do Brasil em Lisboa, Vera Lucia Amaral Ferlini, responsável pela Cátedra Jaime Cortesão da Universidade de São Paulo e Instituto Camões, para além de Francisco Roque de Oliveira, pela comissão organizadora do Simpósio. A lição inaugural esteve a cargo de Joaquim Romero Magalhães (Universidade de Coimbra), que dissertou sobre «O desconhecido Brasil, de los comienzos a 1799, de Jaime Cortesão (1956)». Trata-se de uma obra que apareceu integrada no volume 26 da Historia de América y de los Pueblos Americanos dirigida por Antonio Ballesteros y Berreta, publicada em Barcelona pela Editorial Salvat. Sabe-se que a mesma obra teve origem num contrato assinado ainda em 1933, quando Cortesão vivia exilado em Madrid e cuja concretização em livro seria protelada pelas vicissitudes da Guerra Civil de Espanha e da II Guerra Mundial.

A primeira mesa do Simpósio foi subordinada ao tema «Jaime Cortesão, editor e edições», tendo sido preenchida por duas comunicações que articularam a principal actividade de Cortesão enquanto publicista durante a I República Portuguesa e o seu contributo como editor e tradutor ao longo das décadas seguintes. Daniel Pires (Centro de Estudos Bocageanos e CLEPUL-Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa) trouxe uma comunicação sobre «Jaime Cortesão, o Grupo da Biblioteca e a Seara Nova», tendo apresentado uma carta desconhecida na qual o escritor e jornalista Raul Proença – chefe da Divisão dos Serviços Técnicos da Biblioteca Nacional durante a Direcção de Cortesão – se insurge contra a censura imposta na sequência do golpe militar do 28 de Maio de 1926, que instituiu a ditadura em Portugal. Coube a Daniel Melo (CHAM) apresentar «Jaime Cortesão enquanto promotor da edição e da leitura», sumariando a fecunda actividade que decorreu entre a colaboração de Cortesão com o movimento cultural Renascença Portuguesa e o magistério da Universidade Popular do Porto, em 1914, e o seu trabalho como editor literário no Brasil, passando pelo compromisso que teve com a Associação Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura, em particular por via da participação nos Congressos Internacionais de Escritores pela Defesa da Cultura de 1935 (Paris) e 1937 (Valência-Madrid-Barcelona-Paris).

Jaime Cortesão durante o seu exílio no Brasil (c. 1950)
Jaime Cortesão durante o seu exílio no Brasil (c. 1950)

A segunda mesa foi dedicada à «Escrita da História», agrupando quatro comunicações. Vera Ferlini apresentou «Jaime Cortesão: novas dimensões para a História de São Paulo». Partindo das obras A Fundação de São Paulo – Capital Geográfica do Brasil (1955), Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1952-1961) e Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil (1958), Ferlini salientou o modo como as mesmas dialogaram com as perspectivas historiográficas do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e as teses de alguns dos seus notáveis historiadores brasileiros de então, como Afonso d’Escragnolle Taunay e Sérgio Buarque de Holanda. Renato Amado Peixoto (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) centrou a sua intervenção intitulada «Oxymoron: Cortesão, Varnhagen, o Meridiano de Tordesilhas e a representação da Formação do Brasil» numa perspectiva equivalente a essa. Neste caso, tratou-se de confrontar alguns dos conteúdos consolidados na historiografia brasileira do século XIX, que se repercutiram duradouramente na construção programática da identidade nacional através do ensino da Geografia e da História, com algumas das teses que Cortesão gizou para explicar o processo de formação territorial deste país e que formalizou em dois projectos editorais organizados no âmbito do Ministério das Relações Exteriores do Brasil: o Atlas Histórico do Brasil (1959) e a História do Brasil nos velhos mapas (1957-1971).

«Os irmãos Jaime e Armando Cortesão. Dos exílios e das polémicas historiográficas na expansão atlântica» constituiu o título escolhido por Rui S. Andrade (Centro de História da Universidade de Lisboa), numa comunicação centrada em algumas das mais relevantes teorias que estes dois historiadores desenvolveram ao longo de décadas no quadro de um esforço intelectual mais vasto, com raízes fundas na historiografia do século XIX, e de que são exemplo a chamada «política do sigilo» e o suposto descobrimento pré-colombino da América pelos portugueses. Como ilustrou Andrade, tais teorias estiveram na origem de um intenso debate travado entre os irmãos Cortesão e diversos académicos anglo-saxónicos, assim como com alguns dos seus pares portugueses e brasileiros, constituindo um dos aspectos mais interessantes, mas também mais controversos do seu legado. A fechar a sessão, José Manuel Garcia (Academia Portuguesa da História) apresentou «Os Descobrimentos Portugueses de Jaime Cortesão: balanço de uma carreira historiográfica». Como o título indicia, tratou-se de uma abordagem àquela que constitui a última grande empresa historiográfica de Cortesão, vista aqui, simultaneamente, como ponto de chegada e síntese monumental de cerca de quatro décadas de carreira no domínio da história da expansão portuguesa.

A última mesa do Simpósio agrupou três comunicações à volta do tema genérico «Geografias do exílio». Cristina Clímaco (Université Paris 8) leu «O exílio europeu de Jaime Cortesão e a luta antifascista (1927-1940)», descrevendo e contextualizando os períodos de permanência de Cortesão em Espanha e França na sequência da sua participação na frustrada revolta de Fevereiro de 1927 contra a ditadura militar portuguesa e o papel que lhe coube como dinamizador de sucessivas iniciativas aglutinadoras da oposição no exílio. Entre estas, Clímaco destacou a União dos Antifascistas Portugueses Residentes em Espanha, criada em Madrid depois da vitória eleitoral da Frente Popular, em Fevereiro de 1936, e a Delegação da Frente Popular Portuguesa instituída em Barcelona com apoio do governo republicano e da Generalitat da Catalunha. Francisco Roque de Oliveira (CEG-Universidade de Lisboa), Roger Lee de Jesus (Universidade de Coimbra) e Rui S. Andrade apresentaram «Abraça-te o teu irmão muito amigo: a correspondência entre Jaime e Armando Cortesão», tendo sintetizado o conteúdo do extenso conjunto de cartas dispersas pelos arquivos de Lisboa, Coimbra e Rio de Janeiro através das quais se podem seguir as vicissitudes do exílio durante muito tempo partilhado pelos irmãos Cortesão, os contextos que os enquadraram, assim como o desenvolvimento das respectivas obras científicas, designadamente no domínio da história da cartografia, cujo interesse partilharam. Por último, Aquilino Machado (CEG-Universidade de Lisboa) expôs «Do Vera Cruz ao Brasil: entre a viagem de Aquilino Ribeiro e as geografias do exílio de Jaime Cortesão», comunicação centrada nos registos autógrafos e na documentação existente sobre a deslocação de Aquilino Ribeiro ao Brasil, em 1952, e o círculo de sociabilidades do exílio político português aí radicado com o qual este escritor manteve importantes contactos.

Em sessão extraordinária que decorreu no início do segundo dia de trabalhos, Roger Lee de Jesus introduziu os dois únicos registos sonoros de Jaime Cortesão editados em disco no final da década de 1950. De seguida, o mesmo Roger Lee de Jesus e Francisco Roque de Oliveira apresentaram o Diaporama que elaboraram a partir da longa entrevista concedida por Cortesão ao jornalista Igrejas Caeiro em 1958 e então emitida pelo Rádio Clube Português. Na mesma ocasião, foi exibido na sala Multimédia da Biblioteca Nacional o episódio do documentário À Porta da História dedicado a Jaime Cortesão. Realizado por Jorge Paixão da Costa para a Rádio e Televisão de Portugal (RTP) em 2015, este episódio foi gentilmente cedido para exibição não comercial durante o Simpósio pela Ukbar Filmes. Paralelamente, os Serviços da Biblioteca Nacional de Portugal, coordenados por Manuela Rêgo, organizaram uma pequena mostra bibliográfica que reuniu algumas das mais importantes obras de Jaime Cortesão nos domínios da historiografia – sobretudo sobre o Brasil –, da crónica de viagens, do registo memorialístico de guerra e da poesia.

Cortesão foi estudado como um protagonista, entre outros, de uma brilhante diáspora política e científica que tem inúmeras afinidades com a diáspora republicana espanhola que se viu obrigada a reinventar-se nas Américas na mesma época, fazendo frutificar aí as suas competências intelectuais e o seu cosmopolitismo.

Entre as sucessivas iniciativas aglutinadoras da oposição portuguesa no exílio dinamizadas por Jaime Cortesão, destacou-se a União dos Antifascistas Portugueses Residentes em Espanha, criada em Madrid depois da vitória eleitoral da Frente Popular, em Fevereiro de 1936, e a Delegação da Frente Popular Portuguesa instituída em Barcelona com apoio do governo republicano e da Generalitat da Catalunha.

Fotografia: Espólio Jaime Cortesão, Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa).

Para maiores informações:

Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. «Saberes geográficos e geografia institucional: influência e relações recíprocas entre Portugal e o Brasil no século XX» | Projecto Convénio FCT-CAPES | 2016-2018 | Proc. 44.1.00 CAPES / 8513/14-7 [página web] <http://www.ceg.ulisboa.pt/saberesgeograficos/>   

OLIVEIRA, Fran­cisco Roque de. A «Ilha Brasil» de Jaime Cortesão: ideias geográficas e expressão cartográfica de um conceito geopolítico. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. [Em linha]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 25 febrero 2017, Vol. XXII, nº 1.191. <http://www.ub.edu/geocrit/b3w-1191.pdf>

Francisco Roque de Oliveira é investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.

Investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e Professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.

Dilemas do Turismo na cidade

Teresa Barata-Salgueiro*

O turismo cresceu consideravelmente nos últimos anos e diversificou-se. Em 2016 a procura turística mundial foi de 1235 milhões de pessoas, o que representa um aumento de 4%, 46 milhões, em relação a 2015. O turismo actual caracteriza-se por grande diversidade. A alteração nas características dos viajantes, nas motivações para a viagem e na sua vivência determinaram mudança nos destinos escolhidos e procura de alternativas à oferta hoteleira tradicional. A Airbnb e outras plataformas semelhantes favorecem a expansão de formas de alojamento mais próximas das vivências dos locais. Este texto trata do chamado alojamento local (AL), apartamentos para alugar por períodos curtos a turistas. Depois de analisar as transformações associadas à turistificação de Lisboa, chamo a atenção para o papel desempenhado pela mobilidade dos capitais e pelas políticas públicas nesse processo.

Falta de conservação, população envelhecida e valores de alugueres baixos contribuíram para a degradação de muitos edifícios do centro histórico de Lisboa que perde população desde 1980. Com as oportunidades de negócio no turismo e os incentivos à reabilitação urbana assistiu-se nos últimos anos a obras nos prédios e apartamentos destinados ao aluguer em AL. Os centros urbanos ganharam nova vida e animação, mas crescem as referências à presença excessiva do turismo, pelos problemas que acarreta para os residentes.

A turistificação evidencia também a agudização das desigualdades e respostas à crise. Estudos efectuados em Lisboa mostram que os detentores deste tipo de propriedades são relativamente jovens e, para muitos, a actividade representa o essencial do seu trabalho ou um complemento indispensável dos rendimentos.

Identificaram-se sinais de dualização e concentração na estrutura da propriedade dominada pelos que apenas possuem uma unidade (71% dos titulares com 34% das unidades) e os que exploram grande número (3,7% com 29% das unidades), com tendência para aumentar, em resultado da concorrência.

O AL tem uma fortíssima concentração no centro histórico de Lisboa (Fig 1). De facto, em 2017, havia 12,3 apartamentos turísticos por 1000 residentes na cidade, mas esse índice atinge 148 por mil no coração do centro histórico. Nesta área, pequenos apartamentos em edifícios sem elevador nem garagem rendem mais quando destinados ao turismo e saem do mercado normal do arrendamento. As casas para alugar escasseiam e os preços disparam. É quase impossível famílias de rendimentos baixos e médios terem agora acesso a um alojamento com localização central. Registaram-se também alterações nas condições de vida de muitos bairros. São constantes as referências ao ruído provocado por grupos de forasteiros fora de horas, a história de vizinhos forçados a abandonar as suas casas, ao comércio local que foi substituído por bares e lojas de artesanato.

Para se entender estes processos tem de atender-se às mudanças verificadas no turismo, e considerar também o papel que o imobiliário desempenha na acumulação do capital. A facilidade em negociar hipotecas sobre o imobiliário integra este sector na financeirização da economia e na circulação geral de capitais à escala internacional. Os territórios tornaram-se objecto de operações de investimento que concentram a procura em determinados locais, com consequência na subida de preços e obtenção de vultuosas mais-valias. Verifica-se interesse crescente de capitais estrangeiros por projectos de reconstrução de edifícios, com frequência destinados a habitação e uso turístico, tanto hotéis como unidades de AL.

As políticas públicas favorecem estas dinâmicas. Facilidades fiscais e de residência concedidas a não nacionais a troco de investimento, quase sempre no imobiliário, a aposta no turismo urbano como motor da economia, a política de incentivos à reabilitação urbana, acções de requalificação do património e do espaço público, de marketing e promoção da imagem urbana, bem como o crescimento da oferta cultural conjugaram-se para aumentar os turistas em Lisboa, como sucede em muitas outras cidades. A alteração da lei do arrendamento em 2012, com a liberalização do valor dos alugueres e a maior facilidade em cessar o direito do inquilino à habitação, facilitou a expulsão de muitas famílias de suas casas.

A turistificação das cidades é acompanhada de importante intervenção no edificado e no espaço público, crescimento das actividades económicas e do emprego, mas tem também efeitos perversos, porque reduz drasticamente a oferta de casas para arrendar, inflacionando o valor dos alugueres, nega o acesso ao lugar a residentes expulsos de suas casas e bairros, viola a privacidade e segurança de alguns edifícios e contribui para a descaracterização dos sítios. É objecto de controvérsia social e política e presença constante nos media. Muitas cidades têm tentado regular o AL fixando um limite de dias no ano para a ocupação do alojamento, exigindo licenciamento, limitando o número de licenças em certas áreas, alterando o regime fiscal. Não têm tido grande sucesso. Os estudos mostram que é necessário integrar o turismo tendo em vista uma cidade aberta à diversidade e à inovação mas socialmente inclusiva.

Para maior informação:

Barata-Salgueiro,T. Alojamentos Turísticos em Lisboa. Em: Scripta Nova.Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universitat de Barcelona. 2017, vol. XXI, nº 578

* Professora da Universidade de Lisboa, IGOT, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território.

Os incêndios de junho em Portugal – uma leitura geográfica da catástrofe

Sérgio Claudino*

Nunca visitei Pedrógão Grande, onde eclodiu o incêndio, nem Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos, municípios vizinhos, integrados na Região de Leiria, igualmente muito afetados pelo fogo – que, entretanto, se estendeu a outros municípios, como Oleiros e Góis.

Quadro 1 – Indicadores de demográficos e económicos 2015


Pop. Absol.Dens. Popul.Saldo naturalÍndice de envelhec.Poder de compra per capita
Pedrógão Grande358527,8-4827569
Castanheira de Pera328942,4-4337070
Figueiró dos Vinhos637433,6-5831570 a)
Oleiros588511,3-11258162 a)
Góis400115,2-4230367 a)
Portugal10358076112,3-23039144100
  1. Valores de 2013 Fonte: Instituto Nacional de Estatística, www.ine.pt

Este são municípios do “Pinhal Interior”, em que domina a floresta de eucaliptos e pinheiros. Possuem uma limitada população, baixa densidade populacional, estão em perda de população, com uma população extraordinariamente envelhecida – da mais envelhecida em Portugal (Quadro 1) e, mesmo, na União Europeia. Enfim, é uma população com reduzido poder aquisitivo.

Nestes concelhos repulsivos, periféricos, a floresta vai tomando conta das parcelas de terra que deixam de ser cultivadas.

Nestes concelhos repulsivos, periféricos, a floresta vai tomando conta das parcelas de terra que deixam de ser cultivadas. O facto de terrenos perderem pastos, cereais, hortas e passarem a ter mato e floresta, facilita a progressão dos incêndios.

O incêndio iniciou-se, aparentemente, por causas naturais: no sábado houve condições anormais de temperaturas elevadas (mais de 40ºC) e grande secura do ar; o incêndio terá começado com uma trovoada seca, em que um raio atingiu uma árvore, que pegou fogo. Os ventos fortes espalharam o fogo em várias direções.

Muitos dos mortos em consequência do incêndio faleceram nas suas viaturas: ou na estrada nacional que liga Figueiró dos Vinhos a Castanheira de Pera (e aí reside a grande questão deste grande incêndio, se esta estrada nacional não deveria ter sido cortada ao trânsito mais cedo, no passado sábado) e/ou eram habitantes de pequenas aldeias ameaçadas pelos fogos, que pegaram nos seus carros e tentaram fugir, frequentemente com árvores incendiadas a caírem sobre os próprios carros. Em geral, sobreviveram as pessoas que ficaram nas aldeias, aproveitando os espaços conhecidos.

No Verão, em Portugal, são infelizmente habituais estas tragédias, quando as temperaturas são elevadas e a humidade reduzida, como é caraterístico do clima mediterrânico. Contudo, estes incêndios são os mais mortais de sempre no país. Há um problema que é habitualmente reconhecido: a falta de ordenamento territorial das áreas atingidas e, em particular, de ordenamento florestal. Enquanto a floresta se expandir sem controlo, se aproximar das populações, sem limpeza do substrato arbóreo, sem uma vigilância adequada contra incêndios e sem recursos técnicos e humanos suficientes para acudir aos incêndios, este drama português ameaça perpetuar-se.

Há muita geografia por detrás da atual catástrofe dos incêndios em Portugal.

*Professor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa

Patrimonio y paisaje en España y Portugal. De lo singular a lo territorial

Mª Isabel Martín Jiménez

La protección y conservación del patrimonio se hace, en un principio, a título individual y en relación con el arte, la naturaleza o la historia; es el monumento o el parque natural “per se”. Al valor singular se añaden pronto otras consideraciones y se van incorporando aspectos culturales hasta llegar al paisaje y al patrimonio territorial. En la actualidad, el patrimonio se asocia con la interacción entre el grupo humano y la naturaleza en un espacio determinado a lo largo del tiempo; es pues un “palimpsesto” que conserva las huellas de generaciones anteriores y sobre él ponemos nuevas letras que lo convierten en un recurso para el desarrollo territorial.

El patrimonio en las recomendaciones internacionales

De manera muy sintética podemos decir que se pasa del monumento al monumento histórico, del monumento histórico al conjunto histórico, y de ahí al patrimonio cultural y natural que desemboca en el paisaje cultural. Los textos emanados desde las instancias internacionales nos marcan este paso. La Carta de Atenas de 1931, de conservación de monumentos de Arte e Historia, centra sus esfuerzos en salvaguardar las obras maestras en las cuales la civilización ha encontrado su más alta expresión. La Carta de Venecia de 1964 considera al monumento asociado al ambiente urbano o paisajístico en el que se inserta e incorpora el significado cultural.

EL PATRIMONIO ES UN PALIMPSESTO SOBRE EL QUE PONEMOS NUEVAS LETRAS

En la Convención sobre la Protección del Patrimonio Mundial Cultural y Natural, auspiciada en 1972 por la UNESCO y celebrada en París, se establecen los principios del Patrimonio Mundial de la Humanidad en función tanto de los valores culturales como de los naturales, se acotan las categorías de monumentos, conjuntos y lugares y se da paso a la Lista del Patrimonio Mundial de la Humanidad. En 1992, el Comité de la Convención del Patrimonio Mundial añade al listado los paisajes culturales como “obras combinadas de la naturaleza y el hombre”

El Generalife, incluido como Bien cultural en la categoría de Monumento, junto con la Alhambra en la lista del Patrimonio Mundial en 1984 (Granada, España).
El Generalife, incluido como Bien cultural en la categoría de Monumento, junto con la Alhambra en la lista del Patrimonio Mundial en 1984 (Granada, España).
Viñedos cultivados en bancales en el Alto Douro Vinhateiro, considerados Paisaje Cultural Patrimonio de la Humanidad en 2001 (Portugal).

El patrimonio de España y de Portugal catalogado Patrimonio Mundial recoge en parte la evolución señalada. Primero se incorporaron monumentos culturales, como la Alhambra y el Generalife de Granada en 1984 o el Mosteiro da Batalha en 1983, y naturales: el Parque Nacional de Garajonay; después conjuntos como la Ciudad Vieja de Salamanca o el Centro Histórico de Guimarães y, con posterioridad en 2001, paisajes culturales como el de Aranjuez o el del Alto Douro Vinhateiro.

Las normativas nacionales de conservación del patrimonio

El devenir de las normas nacionales que protegen el patrimonio construido y el natural en España y en Portugal han ido de la mano, tanto en la secuencia como en la incorporación de las recomendaciones surgidas en el ámbito internacional. Primero se preocupan por el legado histórico y artístico de los pueblos que habitaron la Península Ibérica desde la prehistoria, y lo consideraron una riqueza; después se fueron sumando a las propuestas de la UNESCO, aunque en ambos países la legislación atiende de manera independiente los bienes culturales y los naturales.

DEL MONUMENTO ARTÍSTICO AL CONJUNTO HISTÓRICO

Y DE AHÍ AL PAISAJE CULTURAL

La preocupación por la salvaguarda de los bienes patrimoniales hunde sus raíces en el siglo XVIII y se vincula con las Reales Academias de la Historia, y en el caso de España también con la Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, que instan a conservar y proteger los edificios histórico-artísticos. En este primer avance primaba el carácter monumental de la obra de arte y los aspectos históricos; con posterioridad se sucederán distintas declaraciones que incorporan, además, el “interés público” o el “valor para el municipio” entre los requisitos para que un bien sea catalogado como monumento, al tiempo que se señala la necesidad de proteger su entorno y, ya en la segunda mitad del siglo XX, se avanza en los aspectos culturales y en el paisaje. Los espacios naturales siguen un camino similar: primero se declaran espacios singulares como Parque Nacional, después se atiende a su valor y su representatividad.

Fruto de la evolución del concepto de patrimonio y de su concreción legislativa en los dos países ibéricos se ha protegido mayoritariamente monumentos, casi tres cuartas partes de los bienes clasificados, mientras que los conjuntos apenas representan el 10 por ciento. El patrimonio natural se asocia directamente con los Parques y la superficie reservada a los Paisajes Protegidos oscila entre el 2 por ciento en Portugal y el 3 por ciento en España del total catalogado.

Patrimonio, paisaje y ordenación del territorio, a modo de conclusión

La trayectoria de la protección y conservación de los bienes, tanto culturales como naturales, ha recorrido el camino que lleva desde la consideración singular a la relación con el tiempo y con el lugar en el que se asientan y a la valoración del paisaje; y al valor intrínseco se ha sumado el valor de uso, sobre todo para el turismo, que convierte al patrimonio en un recurso para el desarrollo de los territorios.

La sensibilidad por el patrimonio territorial, por su ordenación y gestión, aparece en las recomendaciones internacionales y en las políticas nacionales. El Convenio Europeo del Paisaje, firmado en Florencia en 2000 introduce la dimensión social del paisaje, considerado como un elemento de bienestar, y se avanza en la necesidad de una gestión y ordenación responsable más allá de la mera conservación. Las normas estatales y regionales siguen esa senda y consideran el patrimonio un objetivo prioritario para la ordenación del territorio. Se abre así una nueva puerta para el patrimonio territorial.

Para mayor información:

MARTÍN JIMÉNEZ, Mª Isabel. Patrimonio y paisaje en España y Portugal. Del valor singular a la integración territorial. En Boletín de la Asociación de Geógrafos Españoles, 2016, nº 71, p. 347-374. ISSN 0212–9426. Disponible en <http://www.age-geografia.es/ojs/index.php/bage/article/viewFile/2286/2181>

Mª Isabel Martín Jiménez es profesora del Departamento de Geografia de la Universidad de Salamanca (España). imaji@usal.es

«Hoy me anuncian que la revolución de Portugal será mañana»: O exílio de Jaime Cortesão na Espanha republicana

Francisco Roque de Oliveira

Nos copiosos diários escritos durante os primeiros anos da II República Espanhola, Manuel Azaña deixa algumas anotações mais ou menos crípticas a respeito daquilo que denomina de «asunto portugués». Na generalidade desses apontamentos de 1931 a 1933, o interlocutor do ministro da Guerra e presidente do Conselho é «Corteçao» (sic). Azaña referia-se a Jaime Zuzarte Cortesão (1884-1960), que descreve como um homem alto, solene, de olhar duro e barba ruiva, falando devagar e com manifesta dificuldade o castelhano, o que aumentava a sua solenidade. Invariavelmente, o assunto em causa correspondeu a uma das mais delicadas conspirações urdidas entre o governo republicano espanhol e a liderança da oposição democrática portuguesa radicada em Espanha depois da proclamação da II República, em Abril de 1931, e aqui representada por Cortesão. Tratava-se do fornecimento de dinheiro para a compra de armas destinadas a sustentar uma revolução que levasse à queda da ditadura em Portugal.

O enredo desta história teve o seu primeiro acto num rocambolesco plano para subtrair material de guerra do aeródromo murciano de Los Alcázares, concretizado por via de Ramón Franco, ao tempo director-geral da Aeronáutica Militar, parte do qual acabou usado no fracassado pronunciamento militar de 26 de Agosto de 1931, em Lisboa, durante o qual os revolucionários bombardearam a capital portuguesa, tomando depois o caminho da fuga para os aeródromos de Sevilha e Huelva. Se esta acção veio oferecer preciosos argumentos à ditadura de Salazar e Carmona para qualificarem a República espanhola como uma ameaça objectiva à independência nacional, em nada beliscou o grande desígnio de repintes iberistas que Azaña parece ter acalentado por interpostos expatriados portugueses.

Enquanto o mexicano Martín Luis Guzmán, director do El Sol e ex-lugar tenente de Pancho Villa, assegurava a ligação directa entre Cortesão e Azaña, este intercedeu pelos portugueses junto do industrial basco Horacio Echevarrieta. Alegadamente a braços com a iminente insolvência dos seus negócios de construção de navios de guerra, Echevarrieta acabaria enredando o Consorcio de Industrias Militares, conhecida criação azañista. Viriam também à tona conivências mais ou menos claras de personalidades como Indalecio Prieto, ministro da Fazenda, Luis Rodríguez de Viguri, director do Banco de Crédito Industrial, ou o empresário Juan March. Por tortuosas linhas nunca explicadas por completo, toda esta trama viria a desembocar no famoso episódio do vapor Turquesa, apreendido no porto asturiano de San Esteban de Pravia com um nutrido carregamento de armas nas vésperas da fracassada insurreição das Astúrias, de Outubro de 1934. Como também se sabe, este constituiu o pretexto mais imediato para o processo parlamentar com que a Confederación Española de Derechas Autónomas (CEDA) de Gil Robles quis crucificar Azaña nos meses seguintes.

Jaime Cortesão emerge como o principal personagem português desta série de incidentes. Médico, poeta e dramaturgo, herói da Grande Guerra na frente da Flandres, em 1918, Cortesão fora director da Biblioteca Nacional de Lisboa entre 1919 e 1927 e um dos mais destacados ideólogos e publicistas da infausta I República Portuguesa (1910-1926). Em 1922, viu publicada A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil, a sua obra de estreia como historiador, actividade que o tempo e as circunstâncias viriam a confirmar como a sua inapelável vocação. Exilara-se em França na sequência da destacada participação que tivera na Junta Revolucionária do Porto, de 3 de Fevereiro de 1927, que constituiu a última tentativa séria de derrube da ditadura militar instaurada em Portugal em Maio de 1926. Em Paris, Cortesão integrou a denominada «Liga de Defesa da República», que reunia as principais lideranças republicanas depostas, tendo passado a Espanha em 1931, quando os novos ventos da República espanhola fizeram crer a muitos exilados políticos ser chegada a hora de alinhar os dois governos da Península em torno de um projecto democrático e progressista fraterno.

Cortesão passou então a actuar como putativo embaixador dos interesses do destituído poder republicano português junto do governo de Madrid, conforme se lê nos documentos que relatam as conclusões da Conferência realizada em Novembro de 1931, em Bayonne, em torno da figura tutelar do velho Bernardino Machado, que fora o último presidente da I República Portuguesa. Apesar dos sucessivos desaires e da extrema dificuldade por que passavam os revolucionários acoitados em Espanha, Cortesão impôs-se como uma das raras figuras capazes de congregar boa parte das sensibilidades do exílio português, pródigas em estéreis quezílias intestinas, mas sobretudo muito vulneráveis por força de um desterro que se eternizava.

Entre os telegramas cifrados da Embaixada de Portugal em Madrid, os relatórios dos agentes da polícia secreta portuguesa infiltrados entre os exilados, passando pelas citadas memórias da Azaña, sobram-nos os indícios das conspirações de Jaime Cortesão e do seu grupo, que faziam do Ateneo de Madrid, na Calle del Prado, ponto de reunião frequente. Quando alguns dirigentes e operacionais portugueses foram presos após a repressão da revolução das Astúrias, Cortesão retomou o refúgio francês, só regressando a Espanha depois da vitória eleitoral da Frente Popular, em Fevereiro de 1936. A partir de então, reforça-se o auxílio do governo espanhol à causa dos exilados portugueses, ao mesmo tempo que estes se empenham em denunciar publicamente a cumplicidade de Salazar e do Estado Novo português com os militares espanhóis insurrectos a 18 de Julho.

Já com a Guerra Civil em pano de fundo, Cortesão falará em nome da recém-constituída Frente Popular Portuguesa em duas das sessões do II Congresso Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura, reunido em Valência, Madrid e Barcelona na primeira quinzena de Julho de 1937, e que encerrou em Paris a 18 desse mês. Citando diversos exemplos da solidariedade da resistência portuguesa para com a República espanhola, Cortesão remata a segunda das suas intervenções nesse Congresso, feita em Valência a 10 de Julho, com o comovente testemunho de André Malraux sobre a sabotagem de centenas de bombas alemãs chegadas pela via de Portugal e largadas pela aviação nacionalista em Talavera de la Reina (Toledo), sem que tivessem explodido. «Os portugueses sabem que a sua liberdade e a dos demais povos está ligada à sorte da guerra de Espanha» – diz Cortesão –, ao mesmo tempo que sublinha que a união tácita entre um Portugal e uma Espanha democráticos tem como condição de sucesso «que na Espanha saibam prever todas as reacções da sensibilidade política de um povo, que tem oito séculos de independência, interrompidos apenas por sessenta anos de cativeiro filipino». Era uma resposta objectiva à propaganda de Salazar, que acusava os exilados portugueses de traição à pátria. Mas também é difícil não ler aqui uma advertência do historiador em relação aos pensamentos que Azaña confiava ao seu diário quando escrevia que a solução do assunto dos portugueses «colmaría todas mis ambiciones, y ya podría decir que había hecho un gran servicio a España». Melhor do que ninguém, Cortesão conheceria bem o sentido pleno desta ambição e precavia-se dela.

O Plano L – nome de cifra para o chamado Plano Lusitânia – representaria a derradeira esperança dos exilados portugueses encabeçados por Cortesão e o seu círculo mais próximo numa intervenção armada, ancorada em Espanha, que levasse à queda da ditadura em Portugal. Com diversas ramificações em Inglaterra e França, este projecto foi sendo gizado desde 1937 e previa um desembarque em três pontos da costa portuguesa, realizado simultaneamente a uma vasta operação terrestre que cortasse as linhas nacionalistas até à fronteira de Portugal com a Extremadura espanhola. Apoiava-se nas várias centenas de portugueses que lutavam ao lado dos republicanos espanhóis, parte dos quais foram selecionados e reagrupados em dois aquartelamentos portugueses na Catalunha – em Els Hostalets de Balenyà e Sant Joan de les Abadesses – a partir do segundo semestre de 1938.

Em finais desse ano, a ofensiva das tropas nacionalistas sobre a Catalunha cortaria cerce qualquer possibilidade de realização do Plano L. Nos últimos dias de 1939, Cortesão e a sua família iniciam a fuga em direcção à fronteira francesa juntamente com a restante cúpula dos exilados portugueses, entretanto transferida para Barcelona. A crónica impressiva dessa travessia dos Pirenéus deixou-a Cortesão num dos raros textos autobiográficos que nos legou. Intitula-se No desfecho da Guerra de Espanha e foi escrito escassos dias depois de ter atravessado a fronteira para o lado francês pelo Coll d’Ares, acompanhando uma coluna de portugueses que abandonava apressadamente os seus aquartelamentos catalães. A sua homenagem a Barcelona ficaria fixada no poema A agonia da urbe, que os azares de uma vida tumultuosa deixariam inédito até pouco depois da sua morte – «À noite, a angústia aumenta na cidade. / O incêndio alastra. / O Céu é de fornalha. / A cada instante, num crescendo, / Galga a maré: trovão horrendo, / Ruge mais próxima a batalha…»

Os anos de Jaime Cortesão na Espanha republicana decorreram na permanente expectativa de uma reviravolta na situação interna portuguesa que nunca chegou a ver. «Hoy me anuncian que la revolución de Portugal será mañana», escrevera Azaña no já longínquo Verão de 1931, registando uma das várias informações recebidas da parte de Cortesão, que – como sempre – os factos acabariam por desmentir no dia seguinte. A debilidade dos meios do exílio político português e as suas consabidas dissensões internas, a institucionalização do Estado Novo salazarista e o encaminhamento final da Guerra Civil espanhola, encarregar-se-iam de minar todas as acções sucessivamente pensadas ou executadas pelos exilados portugueses e seus aliados republicanos em Madrid, Valência ou Barcelona. Ora, se assim sucedeu no que respeita à dimensão política da presença de Cortesão em Espanha entre 1931 e 1939, bem diferente foi o fecundo resultado do seu trabalho historiográfico no país vizinho.

«Se puede hacer más historia en Madrid que en Lisboa», terá dito Jaime Cortesão a Manuel Azaña, numa noite de 1931 em que ambos conspiraram longamente em casa de Martín Luis Guzmán sobre os destinos da Península Ibérica. De facto, neste particular, Cortesão conseguiu cumprir a expectativa que tinha sobre si próprio. Entre um curso sobre navegações atlânticas ministrado no Centro de Estudios de Historia de América da Universidade de Sevilha a convite de José María Ots Capdequí e investigações inéditas nos fundos da Biblioteca Nacional de Madrid e no Archivo de Indias, durante os seus anos espanhóis Cortesão logrou dar um impulso decisivo à obra que o consolidará como um dos primeiros historiadores portugueses do século XX. Nestes anos virá a lume a extensa colaboração emprestada à História de Portugal dirigida por Damião Peres, que constituiu a sua primeira grande síntese sobre a temática dos descobrimentos, assim como algumas das suas controversas teses sobre o descobrimento pré-colombino da América pelos portugueses. Anunciando uma das linhas mais originais do seu pensamento, divulga também o primeiro dos textos em que reflecte sobre os pressupostos ideológicos da expansão portuguesa e lhes rastreia uma inspiração joaquimita: «O franciscanismo e a mística dos descobrimentos», publicado pela Unión Ibero-Americana na Revista de las Españas, em 1932.

Em Agosto de 1933, residindo Cortesão na Calle de Ayala, em Madrid, assinou um importante contrato com a Editorial Salvat, de Barcelona, para a preparação de dois textos de fôlego sobre os primórdios da expansão marítima portuguesa e a colonização do Brasil que integrariam a Historia de América y de los pueblos americanos dirigida por Antonio Ballesteros Beretta. As convulsões da Guerra Civil de Espanha – seguidas da prisão de Cortesão em Portugal, em Junho de 1940, e, finalmente, do seu banimento para o Brasil por ordem de Salazar, em Outubro desse ano – ditaram o sucessivo protelamento desta empresa editorial, que acabou por ser publicada entre 1947 e 1956, quando Cortesão já trabalhava ao serviço do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, onde se notabilizou como especialista de história da cartografia e da formação territorial do Brasil nos séculos XVII e XVIII e professor do Instituto Rio Branco. Tal como antes em Madrid, era agora no Rio de Janeiro que Cortesão encontrava meios para cumprir a melancólica profecia de que sempre poderia fazer mais ciência no exílio do que em Lisboa.

Os anos de Jaime Cortesão na Espanha republicana decorreram na permanente expectativa de uma reviravolta na situação interna portuguesa que nunca chegou a ver. «Hoy me anuncian que la revolución de Portugal será mañana», escrevera Azaña no já longínquo Verão de 1931, registando uma das várias informações recebidas da parte de Cortesão, que – como sempre – os factos acabariam por desmentir no dia seguinte.

Jaime Cortesão no Escorial, durante o seu exílio em Espanha (ca. 1936)
Jaime Cortesão no Escorial, durante o seu exílio em Espanha (ca. 1936)

(Fonte: Jaime Cortesão / Raul Proença. Catálogo da Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984). Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985)

Para mais informação:

OLIVEIRA, Francisco Roque de. Jaime Cortesão (1884-1960). En OLIVEIRA, F. R. (ed.). Leitores de mapas: dois séculos de história da cartografia em Portugal. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal; Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa; Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, 2012, p. 125-135. ISBN: 9789725654811 [também em versão ebook]

Francisco Roque de Oliveira é investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa e Doutorado em Geografia Humana pela Universitat Autònoma de Barcelona (2003).

Ficha biblio­grá­fica:

OLIVEIRA, Francisco Roque de. Jaime Cortesão no Itamaraty: os Cursos de História da Cartografia e da Formação Territorial do Brasil de 1944-1950. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de enero de 2014, vol. XVIII, nº 463. <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-463.htm>. ISSN: 1138-9788.

Investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa e Doutorado em Geografia Humana pela Universitat Autònoma de Barcelona (2003).

A investigação sobre o Couto Misto, microestado desaparecido entre a Galiza e Portugal, demonstra que a fronteira hispano-lusa não é como nos explicaram

Juan M. Trillo Santamaría

Valerià Paül Carril

Aceitamos como facto irrefutável que Espanha e Portugal estão separados por uma fronteira perfeitamente fixa. Isso significa que podemos pensar que os territórios de ambos os estados ibéricos permaneceram estáveis ao longo dos séculos. Tal ideia está presente em muitos livros, artigos, folhetos turísticos ou em declarações políticas que falam da fronteira mais velha do mundo. Inclusivamente, nos últimos meses, alguns representantes da esfera pública chegaram a afirmar, relativamente ao atual debate da independência da Catalunha, que «Espanha é uma grande nação com 3000 anos de História» ou que «Espanha é a nação mais antiga da Europa, a primeira nação da Europa a conseguir a sua unidade.» Estas frases transmitem a ideia de que o território espanhol não sofreu mudanças durante séculos e de que Espanha não se alterou no decorrer do tempo. Todas essas afirmações carecem de rigor geográfico e histórico, e respondem ao discurso do nacionalismo espanhol institucionalizado. Como qualquer ideologia política, visa a sua difusão e a sua identificação pelos cidadãos como «realidade objetiva e inquestionável».

Os Estados-nação tentam impor a sua tese territorial como a única válida. Isto silenciou vozes que põem em causa a geografia e história oficiais, transformadas em «verdade». Este nacionalismo (espanhol, mas o mesmo pode ser dito do português) foi absorvido facilmente por diferentes níveis académicos. Nós encontramos evidências deste «nacionalismo metodológico em ciências sociais» ― como tem sido denominado por muitos autores ― nos manuais atuais de geografia, onde podemos ler frases como: «Portugal é o país da Europa que, como nação, mantém há mais séculos uma fronteira que se pode classificar de estável.»

Estudando o microestado desaparecido do Couto Misto ― com três aldeias em 25 km2, atualmente entre os municípios de Baltar e Calvos de Randín (Ourense, Galiza, Espanha) ― podemos demonstrar que a fronteira ibérica sofreu alterações significativas ao longo do tempo. Na verdade, não se pode sustentar que a fronteira tenha ganho forma de linha detalhada ― primeiros nos mapas, com o consequente esforço para demarcar no terreno ― até recentemente, com a aprovação do Tratado de Limites (1864), ratificado na Ata Geral de Demarcação (1906). Tratado que, aliás, introduziu alterações significativas nas pertenças territoriais tradicionais e que foi recebido em muitos locais com resistência e hostilidade. Também é necessário salientar que não é possível falar de fronteira ― entendida como limite preciso que separa dois territórios ― na Idade Média nem na Idade Moderna.

Também é duvidoso que a fronteira fosse um limite intransitável desde o século XIX, como habitualmente é dito, tendo em conta as relações intensas de todos os tipos que têm persistido ao longo das décadas: casamentos mistos, festas e celebrações em comum, contrabando, refúgios, caminhos e rotas de emigração e exílio, etc. Certamente, depois das ditaduras, no final da década de 1970, os contactos foram relançados, principalmente após a entrada de Espanha e de Portugal nas Comunidades Europeias (agora União Europeia) em 1986 e a aplicação do acordo de Schengen (1995).

A análise do Couto Misto permite de facto questionar se, em vez de uma fronteira que «separa» a Galiza de Portugal, não estaremos perante um desejo ideológico de que tal fronteira exista. Desejo esse que se materializou em toda uma retórica gerada pelo poder e difundida ao longo de décadas por vias institucionais do estado, incluindo o sistema educativo. Assim, temos constatado a existência de discursos tendenciosos desde o século XIX que colocam a hipótese de o Couto Misto ser ilegítimo e de representar um problema; mas seria verdade ou interessava apresentá-lo assim? Nessa época, também se discutia com intensidade se o Couto Misto «era mais Galiza (Espanha) ou Portugal». De certa forma, a obstinação académica atual para encontrar a sua origem tenta, em última análise, elucidar esta questão. No entanto, é uma dúvida razoável ou, na realidade, está a ser projetada com preconceitos contemporâneos para com o passado, o que faria dela extemporânea?

A preponderância do discurso do Estado-nação trouxe consigo o desaparecimento, a nível tangível e intangível, da existência do Couto Misto. No entanto, Luis M. García Mañá começou sem saber um processo de recuperação da memória desse território, com a publicação de La frontera hispano-lusa en la provincia de Ourense (1988). Este livro, carregado de pessimismo porque o autor acreditava que o Couto Misto tinha sido perdido e irremediavelmente esquecido para sempre, foi uma contribuição modesta, mas transcendente, para o seu estudo. Mais tarde a criação literária teve em conta esses materiais presentes nesta obra para os projetar para um público mais vasto, pouco ou nada erudito. Devemos salientar a este respeito que o texto de García Mañá foi publicado pelo Museu Arqueolóxico de Ourense, um formato com limitada distribuição, mas sem dúvida de que a literatura consequente falou mais alto. É necessário salientar em especial Arraianos, de Xosé Luís Méndez Ferrín (1991) e A Quinta do Saler, de Antón Riveiro (1999), que têm tido grande aceitação pelo público galego.

A corrente episódica presença do Couto Misto na imprensa, produção audiovisual, ou nas televisões da Galiza e de Portugal, não se pode dissociar daquelas obras literárias que são, sobretudo, produtos estéticos. Neste sentido, tem sido útil estudar o Couto Misto através de alguns olhos da geografia política, da geografia cultural ou dos estudos paisagísticos, análises que nos permitiram explicar as formas como atualmente é representado o Couto Misto. Acreditamos que a literatura tem sido capaz de criar uma paisagem literária que os leitores têm aceitado, tal facto permitiu a progressiva difusão de uma memória silenciada. Neste sentido, estamos gradualmente a conseguir subverter a ideia de uma fronteira entre Portugal e Espanha estável e imutável no tempo. Essa fronteira não é como nos explicaram.

Para mais informações:

PAÜL, Valerià; TRILLO, Juan Manuel: La construcción literaria de los paisajes fronterizos. Una reflexión a propósito del Couto Mixto (Galicia y Portugal). Documents d’Anàlisi Geogràfica, vol. 60, nº 2, pp. 289-314, 2014. [http://ddd.uab.es/record/118482]

PAÜL, Valerià; TRILLO, Juan Manuel: Discussing the Couto Mixto (Galicia, Spain): Transcending the Territorial Trap Trough Borderscapes and Border Poetics Analyses. Geopolitics, publicado en línea el 9 de mayo de 2014. [http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14650045.2013.857310]

TRILLO, Juan Manuel; PAÜL, Valerià: The Oldest Boundary in Europe? A Critical Approach to the Spanish-Portuguese Border: The Raia Between Galicia and Portugal. Geopolitics, vol. 19, nº 1, pp. 161-181, 2014.

[http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14650045.2013.803191]

Juan M. Trillo Santamaría é Investigador de pós-doutoramento no Departamento de Geografia da Universidade de Santiago de Compostela (Galiza), atualmente com uma estadia de investigação no Nijmegen Centre for Border Research (Radboud University, Países Baixos).

Valerià Paül Carril é Assistant Professor em Geografia e Ordenamento do Território na University of Western Australia (Perth, Austrália).