Wagner Costa Ribeiro*
Ainda que abundante em água, quando se analisam os dados de disponibilidade hídrica per capita, observa-se no Brasil um aumento dos conflitos por água nos últimos anos. Entre as causas podem-se apontar tanto a da distribuição dos recursos hídricos e da população, quanto, e principalmente, o uso da água para a produção agrícola e industrial.
Estima-se que no Brasil ocorra cerca de 12% da água doce disponível no mundo. Porém, cerca de 70% desse volume encontra-se na Amazônia brasileira. Trata-se de uma área de ocorrência de rios caudalosos e perenes, associados à elevada pluviosidade do clima equatorial. Entretanto, nessa porção do país concentra-se cerca de 21 milhões de habitantes, pouco mais de 10% do total da população total. Mas é lá que estão as principais hidrelétricas que geram energia para todo o país, graças à integração do sistema de produção e distribuição de energia.
Durante os últimos anos verificou-se um período de alternância de precipitações. Chuvas frequentes deixaram de ocorrer em locais onde elas chegavam regularmente. Áreas com índices pluviométricos em geral mais baixos atingiram períodos ainda mais longos de estiagem. Como consequência observou-se uma maior pressão social pelo uso da água, o que evidencia uma diversificada tipologia de conflitos pela água.
Como o país adotou no passado a hidreletricidade como fonte central para produzir energia elétrica, a variação pluviométrica levou a um uso mais intenso de reservatórios de água para gerar energia. Além disso, utilizaram-se usinas termelétricas para suprir a demanda energética. Porém, foi na produção agrícola que os conflitos ficaram mais evidentes.
Dados da Comissão Pastoral da Terra apontam que em 2016 foram registrados 172 conflitos por água no país. O gráfico a seguir indica um aumento expressivo nos últimos 10 anos.
A disputa pelo uso da água é evidente em muitas Unidades da Federação, com destaque tanto para aquelas que enfrentam secas regulares, como na Bahia, quanto nas que as chuvas são frequentes, mas com oscilação nos últimos anos, como no Pará. A disputa instala-se pela expansão da agricultura intensiva no uso da água, baseada na produção de monocultura de soja, cana-de-açúcar e até mesmo de pinus e eucalipto para produção de papel ou de madeira para construção civil ou de móveis, que chegou ao cerrado brasileira na década de 1970, mas que ganhou impulso nos últimos anos. Outra fonte de conflito é a barragem de rios para a construção de hidrelétricas, o que afeta a organização da vida de inúmeras comunidades. Contaminação de rios por rejeitos da atividade de mineração, como a que ocorreu em Minas Gerais em 2015, também estão entre as causas.
Esse conjunto de problemas gerou movimentos populares destacados.
Em setembro de 2014 a população do município paulista de Itu, que tem cerca de 160 mil habitantes, invadiu a Câmara de Vereadores para protestar contra um racionamento de água que já durava 8 meses, para parte da população, que ficou vários dias sem água. Como forma de luta, surgiram em alguns bairros incêndios que tinham como meta atrair carros de bombeiros para que a população se apropriasse da água. Também houve casos de saques a carros de abastecimento de água enviados pela empresa responsável pelo abastecimento de água no município, que desde 2007 fora privatizado. Itu parou, segundo registros da imprensa. Barricadas e invasões de órgãos públicos foram as estratégias da população para chamar atenção para o problema do desabastecimento de água.
Já em 2017 ocorreu novo evento que ganhou ampla repercussão na imprensa do país. No mês de novembro, a população de Correntina, município localizado na Bahia com pouco mais de 33 mil habitantes, barrou a retirada de água para irrigação em fazendas locais. Esse fato foi noticiado de modo alarmista pela grande imprensa, que chegou afirmar tratar-se de um ato terrorista.
Dias depois, a população voltou às ruas do município. Dessa vez, em número muito maior, para apoiar a ação do grupo anterior. Milhares de pessoas saíram de suas casas para mostrar que o uso da água é muito desigual. Enquanto apenas uma das fazendas tem autorização para retirar 106 milhões de litros por dia de água do rio Arrojado, que deságua no rio Corrente, que por sua vez chega ao rio São Francisco, a população consume cerca de 3 milhões de água por dia!
Entre os manifestantes, indignados, observavam-se cartazes com os dizeres “Não somos terroristas”, “Ninguém vive sem água” e “O rio é nosso”. Ou seja, foi uma resposta tanto à imprensa apressada em desqualificar o movimento de justiça socioambiental quanto pela retomada das condições naturais dos cursos de água. O documentário Insurgência, dirigido por André Monteiro (disponível em https://youtu.be/iFTosuHoiw0), registrou esse movimento.
A expansão da atividade produtiva no cerrado brasileiro, que distribui água para as principais bacias hidrográficas do país, está ocorrendo sem maiores cuidados ambientais. O desmatamento e uso intensivo da água estão entre as causas de diminuição da oferta hídrica e da redução da vazão de rios importantes, como é o caso do São Francisco. Esses aspectos, associados à alteração no padrão de chuvas, pode acarretar em sérias consequências sociais e ambientais, inviabilizando a organização social de inúmeras famílias que vivem em pequenas cidades ou em comunidades às margens dos rios.
É fundamental estabelecer um novo pacto político para o uso das águas no Brasil. Nesse processo é necessário ajustar as outorgas de retirada de água no país. Não é mais possível priorizar apenas um uso da água, principalmente quando ele está associado a empresas transnacionais que exploram o território da população brasileira, exaurindo seus solos e recursos hídricos. A comoção social identitária expressa em Correntina apresenta uma nova marca no movimento pelo uso equitativo da água no Brasil. Ela combina justiça no acesso à água e a garantia de uso pelas gerações atuais e futuras.
Para mais informação: RIBEIRO, W. C.. Conflitos e cooperação pela água na América Latina. São Paulo: PPGH/Annablume, 2013. 350p .
* Wagner Costa Ribeiro é professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo – Brasil e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.