Mais de uma dezena de países latino-americanos já instituíram leis com o objetivo de investigar e punir o assassinato de mulheres em seus territórios. Reconhecido internacionalmente pela criação de uma das três leis mais avançadas do mundo sobre o tema (a Lei Maria da Penha), o Brasil ainda não conseguiu incluir no Código Penal a mais extrema das violências de gênero: o feminicídio. Segundo o Mapa da Violência (2012), estima-se que tenham ocorrido mais de 90 mil assassinatos de mulheres no país desde a década de 1980.
A categoria feminicídio remonta o ano de 1976, quando Diana Russell utilizou o termo em um depoimento frente ao primeiro Tribunal Internacional de crimes contra Mulheres, em Bruxelas. Posteriormente, em parceria com Jill Radford, Russell publicou o clássico Femicide: The politcs of Woman Killing, que se tornou a principal referencia para os estudos na área. As autoras queriam desmascarar o patriarcado, instituição que se sustenta no controle do corpo e na capacidade punitiva em relação às mulheres, e mostrar a dimensão política desses assassinatos (SEGATO, 2006). Assim, ao empregarmos a categoria femicídio ou feminicídio, como tem sido utilizado mais frequentemente, estamos acrescentando um caráter político a um termo neutro como o homicídio. Especialista no tema, Rita Segato, defende que, para a categoria feminicídio ter o mesmo status que a de genocídio, que corresponde a uma agressão genérica e letal a todas as pessoas que pertencem a um mesmo grupo racial, étnico, linguístico, religioso ou ideológico, é preciso dotá-la de tamanha impessoalidade que seja possível expressar juridicamente a intenção de um extermínio das mulheres simplesmente pelo fato de serem mulheres, como grupo, como categoria.
Foram os desaparecimentos e as mortes violentas de mulheres na Ciudad Juarez, México, que acendeu a discussão sobre a questão na América Latina. As práticas chegaram a ser descritas como parte de rituais. Pela omissão diante dos fatos, o governo mexicano foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a investigar todos os casos de feminicídios ocorridos na cidade desde 1993 e criar uma base de dados estaduais e nacionais com informações sobre o assassinato de mulheres.
Atualmente, na América Latina, países como Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Peru e México contam com formas legais de punir o feminicídio, uns por meio da reforma do código penal, outros estabelecendo agravantes para as mortes de mulheres por questões de gênero. O pioneiro foi a Costa Rica, em 2007. As geógrafas Diana Lan, Verônica Ibarra-García e Angélica Bernal, têm levantado o debate sobre violência contra as mulheres na Argentina e no México, por meio de contribuições da Geografia feminista.
No Brasil, um projeto de lei, que altera o código penal ao inserir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, foi aprovado no Senado Federal em 2014. A proposta teve origem na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou a violência contra a mulher em todo o território nacional. A Comissão justificou que a Lei Maria daPenha foi o ponto de partida na luta pela igualdade de gênero e pela universalização dos direitos humanos, mas que precisa ter continuidade através do combate ao feminicídio. A proposta, que aguarda apreciação do Congresso Nacional, trata os crimes com razões de gênero como hediondos, considerando-os expressão máxima das outras formas de violência que acomete as mulheres. De acordo com o projeto, esses crimes passam a prever pena de 12 a 30 anos de reclusão, podendo sofrer aumento de 1/3 quando ocorrer durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra menor de 14 anos, maior de 60 anos ou pessoa com deficiência e, na presença de ascendente ou descendente da vítima.
O feminicídio íntimo, cometido por homens com os quais a vítima tem ou teve relação íntima, familiar, de convivência ou afins, é o mais frequente no Brasil que, com uma taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, ocupa a sétima posição entre os 84 países com dados homogêneos analisados pela Organização Mundial da Saúde no período de 2006 a 2010, como mostrou o Mapa da Violência (2012). O recente estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil, apontou que 16,9 mil mulheres foram assassinadas por parceiros ou ex-parceiros entre 2009 e 2011. Mais da metade delas (54%) eram jovens, com idade entre 20 e 39 anos. A pesquisa do Ipea revelou que houve apenas uma sutil diminuição na taxa de crimes registrados logo após a criação da Lei Maria da Penha, o que evidencia a fragilidade da mesma para os crimes de assassinato.
Sabemos que a tipificação do feminicídio é apenas mais um passo no enfrentamento a todas as violências praticadas contra as mulheres. Em muitos países da América Latina a existência da legislação não garante o fim da impunidade a esses crimes. Contudo, o descompasso de quase uma década entre a vanguarda na criação da legislação que tipifica os crimes de violência contra as mulheres e a morosidade no que diz respeito à inclusão do feminicídio no código penal mostra que, apesar dos avanços legais que tivemos nas últimas décadas, o assassinato de mulheres ainda é visto como um crime menor pelo Estado brasileiro.
Figura 1: Campanha da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Brasil. Fonte: http://www.spm.gov.br/ A Geografia, a partir da abordagem feminista e do seu comprometimento com as transformações sociais, tem muito a contribuir para tornar cada vez mais visível essa relação extremamente desigual de gênero que, nos mais diferentes territórios, resulta na aniquilação do outro através da violência, perpassando todas as camadas sociais e ensejando políticas públicas transversais que envolvem não somente as áreas da saúde e segurança, como podemos vir a acreditar num primeiro momento, mas também educação, economia, direito e tantas outras.
Para maiores informações:
SEGATO, Rita. Qué es un feminicidio. Notas para un debate emergente. Brasília.
Departamento de Antropología, Universidade de Brasília, 2006.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012. Os novos padrões da violência homicida no Brasil. São Paulo, Instituto Sangari, 2011.
Secretaria de Políticas para as Mulheres – Lei Maria da Penha. Disponível em http://www.spm.gov.br/assuntos/violencia/lei-maria-da-penha
Marília Cardoso Lopes, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG); pesquisadora do Núcleo de Análises Urbanas (NAU/FURG).
Susana Maria Veleda da Silva, professora em Geografia do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG); pesquisadora do Núcleo de Análises Urbanas (NAU/FURG) e do Grupo de Investigación de Geografía y Género da Universitat Autónoma de Barcelona/UAB.