por Margareth de Castro Afeche Pimenta
Enquanto privilegiam meios tradicionais em nível mundial, no Brasil as interpretações acerca das paisagens culturais são variadas, deixando escapar sem proteção setores socialmente fragilizados, mas ricos culturalmente, que deveriam ser foco de políticas específicas. Precisar as acepções históricas de cultura talvez contribua para direcionar políticas de preservação, mas também inseri-las numa visão maior de projeto societário.
As paisagens culturais são a oportunidade de estabelecimento da proteção conjunta do ambiente com as formas tradicionais de expressão cultural. Após duas décadas de seu estabelecimento como politica patrimonial, a paisagem cultural apresenta, entretanto, resultados bastante desiguais, tanto em relação aos critérios quanto à distribuição espacial dos bens mundiais preservados. A paisagem foi considerada objeto de proteção bem antes da Convenção do Patrimônio Mundial de 1992, em 1962 e 1972. Por que, então, qualificar a paisagem como cultural 30 anos mais tarde? Impunha-se a necessidade de uma elaboração mais afinada, decodificando-se os termos. Apesar desses esforços, os debates trouxeram uma expansão (e indefinição) inusitada no Brasil. A deriva conceitual, num quadro sempre presente de limitação dos recursos, significa a exclusão de setores relevantes, com perdas irreparáveis.
Um dos caminhos para se recolocar a questão talvez esteja nas múltiplas significações do termo ‘cultura’. Um breve percurso de suas trajetórias históricas, considerando-se descontinuidades e recuperações, pode contribuir para ajustar os termos da preservação patrimonial. Do cultivo das terras na Antiguidade, Cícero transforma seu significado, a partir do estabelecimento da correlação entre plantio, o ato de cultivar, e o espírito humano. No mesmo sentido, Filão inspira-se em Platão quanto ao ‘homem interior”, cultivado, como o lavrador que nutre as boas espécies. O termo ‘cultura’ dispersa-se nas canções de gesta medieval, mantendo a acepção de cultivo até o século XVI, quando se inclui a ‘cultura da língua’ oudo espírito, primeiros passos rumo ao seu conteúdo civilizatório, que adviria no século das Luzes.
A partir do século XVIII, explicita-se cultura, também, com um sentido “figurado”, do cuidado nas artes e no espírito, incluindo o aperfeiçoamento pessoal. Voltaire e Rousseau almejam o homem esclarecido. Ser cultivado derivaria, portanto, de um processo de elaboração. Cultura transforma-se em refinamento; sua transmissão permitiria o aprimoramento da humanidade. Aparece como um processo pessoal, mas também social. Tratava-se, portanto, de um projeto civilizatório.
Somente na segunda metade do século XVIII Kultur torna-se usual na Alemanha, com diversos significados: liberdade de espírito frente aos preconceitos; distinção e fineza nas maneiras; estágio de evolução social, opondo-se à barbárie dos povos selvagens. Visava-se atingir a erudição, capaz de permitir os avanços científicos, mas também a habilidade na utilização dos instrumentos. O progresso material teria importância tanto quanto a evolução das ciências abstratas. As ideias de Kant assemelham-se ao pensamento de Herder e Schiller, sobretudo no sentido progressivo do aperfeiçoamento humano. Como a natureza teria atribuído o mínimo ao homem, haveria a escalada da existência singela à cultura, que se basearia no valor intrínseco do homem, seu valor social.
Somente com Goethe, cultura designa os traços distintivos de um povo determinado. Suas viagens oferecem uma nova visão de mundo, centrada na formação do homem interior, Bildung, onde discerne o indivíduo e seu meio, com o qual partilha hábitos comuns, gostos e formas de pensar. Aqui se constitui Kultur, ou seja, cultura no plural, distinguindo as sociedades por características específicas.
Mesmo os grandes contributos – cultura pessoal ou social – deixariam transparecer os traços culturais. A cultura da nação aparece, também, como legado, colocando a noção de herança e de acumulação histórica. Salientam-se as contribuições particularizadas dos diferentes grupos culturais, bem como a necessidade de transmissão dos saberes e objetos concebidos pela humanidade.
Ter-se-ia que esperar o século XIX para uma política mais sistemática de preservação do patrimônio material, mas também para o surgimento de uma disciplina, a antropologia, centrada sobre grupos humanos e sua diferenciação. Foi definida por TYLOR (1871) como um complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, costumes e outros hábitos. A Unesco propõe-se, assim, a valorizar o sentido de cultura para fins societários, englobando as artes e as letras, os modos de vida, os direitos fundamentais, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. Considera os traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos, propondo o aperfeiçoamento humano e cultural. Defende sociedades e grupos em ‘perigo’ de perda de identidades e especificidades. Desenha, assim, um projeto de sociedade, do qual fazem parte grupos heterogêneos, quando define o reconhecimento de valores sociais e culturais. O Brasil deveria dedicar atenção maior ao caráter amplo, mas preciso, do conceito e incorporá-lo ao debate de um projeto sócio-espacial, propiciado pelas paisagens culturais.
Para maiores informações
PIMENTA, Margareth de Castro Afeche. A Paisagem Cultural: múltiplas interpretações nas políticas de preservação. Revista Ateliê Geográfico, Vol.10, nº2, ago./2016. Disponível em <https://revistas.ufg.br/atelie/article/view/38054>
Margareth de Castro Afeche Pimenta é Arquiteta e Urbanista. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.