AS MOBILIZAÇÕES QUE VARRERAM O MUNDO, O BRASIL, O RIO DE JANEIRO…

por Alvaro Ferreira

Não há como passar ao largo das inúmeras mobilizações que varreram o mundo e mais especificamente o Brasil e o Rio de Janeiro neste início do século XXI. Occupy, nos Estados Unidos, Londres, São Paulo, Rio de Janeiro; os Indignados, na Espanha; a Geração à Rasca, em Portugal; a Primavera Árabe; e, desde junho de 2013, uma sequência de mobilizações tomou as ruas do Brasil, sendo que na cidade do Rio de Janeiro, determinada manifestação chegou a reunir mais de 500 mil pessoas.

A população foi para a rua e isso deixou os governantes, a mídia, os empresários e a própria academia desnorteados. Estávamos acostumados a dizer que o povo não se indignava com nada, que a juventude era acomodada e individualista; de repente, milhares de pessoas se aglomeraram nas ruas pressionando os governos por mudanças.

Alguns tentaram qualificar as mobilizações como mais uma festa, desprovida de consciência política. Os mais sonhadores chegaram a imaginar uma grande revolução. Acreditamos que não se trata de uma coisa ou de outra, ao menos no que se refere à maneira como se via e definia os antigos movimentos sociais. Todavia, se pôs em questão as relações de poder, o autoritarismo, a prepotência dos governantes, o pouco caso com a população no que se refere aos serviços a ela prestados. Bilhões gastos em obras e projetos que não serão utilizados pela maior parte da população, descaso com a saúde pública, com a educação e com a qualidade dos transportes públicos.

Ver a importância da dimensão do corpo na rua, ocupando o espaço – agora verdadeiramente público – que é de todos, foi emocionante! Agora parece que entendemos que as redes sociais podem ajudar, mas a verdadeira mobilização obriga-nos a ocupar a rua… a rua como lugar do encontro… como lugar do debate… como lugar da transformação.

Os atos de quebra-quebra ocorridos são parte do processo. A transformação passa pela mobilização da população, que não está satisfeita com as instituições públicas, com os partidos políticos, com os sindicatos e as associações. Lembrou-nos o filósofo Henri Lefebvre, pouco depois das manifestações ocorridas na França em maio de 1968, que a revolução urbana não tem como pressuposto ações violentas, mas não as exclui; “como separar antecipadamente o que se pode alcançar pela ação violenta e o que se pode produzir por uma ação racional? Não seria próprio da violência desencadear-se? E próprio do pensamento reduzir a violência ao mínimo, começando por destruir os grilhões no pensamento?”

(foto, títol: MANIFESTAÇÃO REÚNE MAIS DE 500.000 PESSOAS NO RIO DE JANEIRO)

Tomar consciência é o primeiro passo; o impossível está se tornando possível.

Quando os manifestantes se colocam tão fortemente contra os partidos políticos, isso é sinal de que não se sentem representados por eles, e, portanto, é preciso que os partidos se repensem.

O oportunismo sempre fez parte da sociedade, isso não é nenhuma novidade. Os saques que têm acontecido são exemplos de oportunismo. O quebra-quebra é algo que acaba fazendo parte do processo… Ruim?! Bom?! Exagero?! É parte do processo.

Os ataques à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e à Prefeitura têm um caráter específico: «um prédio é um símbolo, assim como destruí-lo também é», dizia o personagem “V” (dos quadrinhos), cuja máscara é usada por grande número de manifestantes.

Agora estão culpando parte da população pela manifestação violenta, pelo quebra-quebra, mas quem começou tudo isso? Foram nossos dirigentes, políticos, empresários oportunistas (que financiam campanhas esperando «colher» os lucros depois), os sindicatos, associações etc. Ao desrespeitar a população com seu pouco caso, com o oportunismo e a corrupção generalizada, com a falta de ideologia partidária, com seus altos salários, com o descolamento do cidadão, eles acabaram empurrando a população para as ruas. Com as manifestações pacíficas vieram também o quebra-quebra e os ditos oportunistas com saques e destruição. Mas eles também foram empurrados para a rua.

Mas estamos falando da apropriação do espaço, da valorização do uso do espaço público, do estar juntos na luta, mesmo com diferenças, com diferentes visões de mundo. É a maturidade intelectual que permite compreender que somos seres políticos e isso independe da política institucionalizada.

Onde há poder, há também resistências. É no lugar que optamos por adaptar-nos ao que é imposto ou procuramos subverter o jogo.

«O povo não deve temer seu governo, é o governo que deve temer seu povo!”

Acreditamos ser necessário escapar da tendência a hierarquizar as mobilizações. Há uma grande produção bibliográfica acerca dos movimentos sociais, contudo é preciso entender essas mobilizações e este momento. Caso contrário, os conceitos e teorias que utilizamos podem servir como cegantes e não como iluminadores.

Precisamos valorizar os contextos da ação, vínculos sociais, vivências e experiências. Não podemos renegar o pequeno, o fugaz, que pode ser de grande importância por constituir-se na única resistência possível. Talvez seja o momento de valorizarmos mais as divergências que o consenso, principalmente um consenso cada vez mais produzido artificialmente, cada vez mais consenso midiático.

Isso tudo nos coloca aberturas e possibilidades; e sabemos que «não há certezas, apenas oportunidades». Mesmo a autogestão não prescinde do Estado e de legisladores. É preciso trabalhar pelo desvanecimento do Estado através da cada vez maior participação. «O povo não deve temer seu governo, é o governo que deve temer seu povo!” (fragmentos da fala do personagem “V” dos quadrinhos).

Trata-se do desejo de construir outra cidade, em que o direito à cidade se realize em plenitude, em que não apenas se possa sobreviver, mas viver… viver plenamente!

Para maiores informações:

FERREIRA, Alvaro. A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço. Rio de Janeiro: Consequencia, 2011. 296p.

FERREIRA, Alvaro, RUA, João, MARAFON, Glaucio, SILVA, Augusto César Pinheiro da. (Orgs.) Metropolização do espaço: gestão territorial e relações urbano-rurais. Rio de Janeiro: Consequencia, 2013. 528p.

Alvaro Ferreira é professor do Departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Assistencialismo: Peça-chave de um conflito

Fabiana Valdoski Ribeiro*

São notáveis as intervenções do Estado em favelas da América Latina. Em muitos países, a primeira década dos anos 2000 representou um avanço de políticas de urbanização de favelas e de regularização fundiária de interesse social. Por décadas elas foram reivindicadas por diversos movimentos sociais urbanos. O objetivo principal era dar as condições básicas de vida aos moradores das favelas com implantação de infraestruturas, como sistema de abastecimento de água, rede de esgoto, parques, abertura de ruas para ventilação e luminosidade. Também fazia parte dos objetivos um processo participativo dos residentes como forma de não romper com os laços existentes entre eles. A ideia central era construir um projeto coletivo no qual os novos espaços construídos fossem usados e mantidos pelos próprios moradores.

No entanto, os processos de participação avançaram com dificuldade, principalmente pelas relações de assistencialismo dentro da maioria das favelas. Se por um lado, houve melhoria das condições de habitação, por outro, o uso de acordo com as vontades do moradores não foram contempladas resultando em conflitos. O próprio poder público reforçava as relações entre ONGs, entidades e outras instituições na decisão sobre os projetos e os moradores se transformavam em simples expectadores da mudança da favela. Por isso, muitos dos limites dos processos de urbanização de favelas estão ligados à prática do assistencialismo.

MUITOS DOs limites doS processos de urbanização de favelas estão ligados À prática do assistencialismo.

Na metrópole de São Paulo, com mais de 11 milhões de habitantes e com aproximadamente 10% deles vivendo em favelas, as políticas de urbanização foram postas como alternativa desde os anos 1980. Desde este período, um conjunto de recursos financeiros, tipos de programas e formas de atuação estão sendo desenvolvidos para alcançar os objetivos propostos. Uma das ações do poder público local foi selecionar as favelas e articular os projetos com muitas instituições que atuavam nelas. Este é o caso da Favela Monte Azul na periferia da cidade de São Paulo. Nela se executou um projeto de urbanização de favela entre os anos de 1992 até 2008. A conquista de um novo espaço público foi surpreendente.

De uma favela produzida sobre uma encosta e um córrego, com recorrentes problemas de deslizamento de barracos e enchentes, se transformou numa referência de projeto. Construiu-se quadra poliesportiva, piscina, parque, padaria comunitária, biblioteca, um teatro de arena dando uma nova estampa ao lugar. No entanto, eis que os moradores dela estão condicionados às normas de usos dadas pela ONG na qual realiza os trabalhos assistencialistas dentro dela. Por isso, os jovens da favela não podem usar a quadra a qualquer momento do dia. O parque, com brinquedos para as crianças, são usados por aquelas que fazem parte da escola vinculada ao projeto da ONG. O acesso à biblioteca também é regulado pelas normas da instituição que faz a gestão do novo espaço. O conflito aparece entre moradores e ONGs pelo uso dos novos espaços públicos.

Fonte: Ribeiro, F.V. Novos Espaços Públicos Conquistados Após Urbanização da Favela. 2007

O conflito aparece entre moradores e ONGs pelo uso dos novos espaços públicos.

Casos como a da Monte Azul nos revelam as contradições internas a estes tipos de políticas. A forma de imposição de uma maneira de uso do espaço pela ONG, subordinando os moradores, se realiza pela necessidade destes últimos aos serviços prestados pela instituição, ou seja, pelas formas assistencialistas existentes lugar.

A marca do assistencialismo, como núcleo do conflito, justamente é vista quando percebemos que os moradores não participam em nenhum momento das decisões sobre o seu próprio lugar de morada. Por meio da gestão do espaço, a ONG, formada por não moradores, decidiu sobre o projeto de urbanização da favela. A presença da população se resumiu a algumas pessoas de apoio no contato com aqueles que possuíam casas afetadas pelas obras. Como resultado da mesma gestão, se compôs as regras de uso do espaço público e limitações para aqueles que vivem no lugar.

Os ingredientes ONG, moradores e políticas públicas na escala do lugar proporcionaram para a Monte Azul uma melhoria das condições de habitabilidade invejável para qualquer uma das favelas existentes em São Paulo e também para muitas outras no mundo. Mas, a imbricação entre os sujeitos que nela estão produziu um emaranhado de relações que subordinou os moradores à Associação existente.

Será que estamos diante de uma derrota de um dos objetivos das reivindicações dos movimentos sociais urbanos, ou seja, da possibilidade, por meio de uma política pública e da gestão participativa direta, de poder usar os novos espaços públicos de acordo com as vontades da população que lá vive? Justamente questões como esta começam a aparecer no cenário das cidades latino-americanas.

Para maiores informações:

RIBEIRO, Fabiana Valdoski. As Contradições das Políticas de “Urbanização de Favelas”. REPHE 13, agosto de 2008, p. 40 – 68.< https://sites.google.com/site/rephe01/textos>.