Francisco Roque de Oliveira
Nos copiosos diários escritos durante os primeiros anos da II República Espanhola, Manuel Azaña deixa algumas anotações mais ou menos crípticas a respeito daquilo que denomina de «asunto portugués». Na generalidade desses apontamentos de 1931 a 1933, o interlocutor do ministro da Guerra e presidente do Conselho é «Corteçao» (sic). Azaña referia-se a Jaime Zuzarte Cortesão (1884-1960), que descreve como um homem alto, solene, de olhar duro e barba ruiva, falando devagar e com manifesta dificuldade o castelhano, o que aumentava a sua solenidade. Invariavelmente, o assunto em causa correspondeu a uma das mais delicadas conspirações urdidas entre o governo republicano espanhol e a liderança da oposição democrática portuguesa radicada em Espanha depois da proclamação da II República, em Abril de 1931, e aqui representada por Cortesão. Tratava-se do fornecimento de dinheiro para a compra de armas destinadas a sustentar uma revolução que levasse à queda da ditadura em Portugal.
O enredo desta história teve o seu primeiro acto num rocambolesco plano para subtrair material de guerra do aeródromo murciano de Los Alcázares, concretizado por via de Ramón Franco, ao tempo director-geral da Aeronáutica Militar, parte do qual acabou usado no fracassado pronunciamento militar de 26 de Agosto de 1931, em Lisboa, durante o qual os revolucionários bombardearam a capital portuguesa, tomando depois o caminho da fuga para os aeródromos de Sevilha e Huelva. Se esta acção veio oferecer preciosos argumentos à ditadura de Salazar e Carmona para qualificarem a República espanhola como uma ameaça objectiva à independência nacional, em nada beliscou o grande desígnio de repintes iberistas que Azaña parece ter acalentado por interpostos expatriados portugueses.
Enquanto o mexicano Martín Luis Guzmán, director do El Sol e ex-lugar tenente de Pancho Villa, assegurava a ligação directa entre Cortesão e Azaña, este intercedeu pelos portugueses junto do industrial basco Horacio Echevarrieta. Alegadamente a braços com a iminente insolvência dos seus negócios de construção de navios de guerra, Echevarrieta acabaria enredando o Consorcio de Industrias Militares, conhecida criação azañista. Viriam também à tona conivências mais ou menos claras de personalidades como Indalecio Prieto, ministro da Fazenda, Luis Rodríguez de Viguri, director do Banco de Crédito Industrial, ou o empresário Juan March. Por tortuosas linhas nunca explicadas por completo, toda esta trama viria a desembocar no famoso episódio do vapor Turquesa, apreendido no porto asturiano de San Esteban de Pravia com um nutrido carregamento de armas nas vésperas da fracassada insurreição das Astúrias, de Outubro de 1934. Como também se sabe, este constituiu o pretexto mais imediato para o processo parlamentar com que a Confederación Española de Derechas Autónomas (CEDA) de Gil Robles quis crucificar Azaña nos meses seguintes.
Jaime Cortesão emerge como o principal personagem português desta série de incidentes. Médico, poeta e dramaturgo, herói da Grande Guerra na frente da Flandres, em 1918, Cortesão fora director da Biblioteca Nacional de Lisboa entre 1919 e 1927 e um dos mais destacados ideólogos e publicistas da infausta I República Portuguesa (1910-1926). Em 1922, viu publicada A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil, a sua obra de estreia como historiador, actividade que o tempo e as circunstâncias viriam a confirmar como a sua inapelável vocação. Exilara-se em França na sequência da destacada participação que tivera na Junta Revolucionária do Porto, de 3 de Fevereiro de 1927, que constituiu a última tentativa séria de derrube da ditadura militar instaurada em Portugal em Maio de 1926. Em Paris, Cortesão integrou a denominada «Liga de Defesa da República», que reunia as principais lideranças republicanas depostas, tendo passado a Espanha em 1931, quando os novos ventos da República espanhola fizeram crer a muitos exilados políticos ser chegada a hora de alinhar os dois governos da Península em torno de um projecto democrático e progressista fraterno.
Cortesão passou então a actuar como putativo embaixador dos interesses do destituído poder republicano português junto do governo de Madrid, conforme se lê nos documentos que relatam as conclusões da Conferência realizada em Novembro de 1931, em Bayonne, em torno da figura tutelar do velho Bernardino Machado, que fora o último presidente da I República Portuguesa. Apesar dos sucessivos desaires e da extrema dificuldade por que passavam os revolucionários acoitados em Espanha, Cortesão impôs-se como uma das raras figuras capazes de congregar boa parte das sensibilidades do exílio português, pródigas em estéreis quezílias intestinas, mas sobretudo muito vulneráveis por força de um desterro que se eternizava.
Entre os telegramas cifrados da Embaixada de Portugal em Madrid, os relatórios dos agentes da polícia secreta portuguesa infiltrados entre os exilados, passando pelas citadas memórias da Azaña, sobram-nos os indícios das conspirações de Jaime Cortesão e do seu grupo, que faziam do Ateneo de Madrid, na Calle del Prado, ponto de reunião frequente. Quando alguns dirigentes e operacionais portugueses foram presos após a repressão da revolução das Astúrias, Cortesão retomou o refúgio francês, só regressando a Espanha depois da vitória eleitoral da Frente Popular, em Fevereiro de 1936. A partir de então, reforça-se o auxílio do governo espanhol à causa dos exilados portugueses, ao mesmo tempo que estes se empenham em denunciar publicamente a cumplicidade de Salazar e do Estado Novo português com os militares espanhóis insurrectos a 18 de Julho.
Já com a Guerra Civil em pano de fundo, Cortesão falará em nome da recém-constituída Frente Popular Portuguesa em duas das sessões do II Congresso Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura, reunido em Valência, Madrid e Barcelona na primeira quinzena de Julho de 1937, e que encerrou em Paris a 18 desse mês. Citando diversos exemplos da solidariedade da resistência portuguesa para com a República espanhola, Cortesão remata a segunda das suas intervenções nesse Congresso, feita em Valência a 10 de Julho, com o comovente testemunho de André Malraux sobre a sabotagem de centenas de bombas alemãs chegadas pela via de Portugal e largadas pela aviação nacionalista em Talavera de la Reina (Toledo), sem que tivessem explodido. «Os portugueses sabem que a sua liberdade e a dos demais povos está ligada à sorte da guerra de Espanha» – diz Cortesão –, ao mesmo tempo que sublinha que a união tácita entre um Portugal e uma Espanha democráticos tem como condição de sucesso «que na Espanha saibam prever todas as reacções da sensibilidade política de um povo, que tem oito séculos de independência, interrompidos apenas por sessenta anos de cativeiro filipino». Era uma resposta objectiva à propaganda de Salazar, que acusava os exilados portugueses de traição à pátria. Mas também é difícil não ler aqui uma advertência do historiador em relação aos pensamentos que Azaña confiava ao seu diário quando escrevia que a solução do assunto dos portugueses «colmaría todas mis ambiciones, y ya podría decir que había hecho un gran servicio a España». Melhor do que ninguém, Cortesão conheceria bem o sentido pleno desta ambição e precavia-se dela.
O Plano L – nome de cifra para o chamado Plano Lusitânia – representaria a derradeira esperança dos exilados portugueses encabeçados por Cortesão e o seu círculo mais próximo numa intervenção armada, ancorada em Espanha, que levasse à queda da ditadura em Portugal. Com diversas ramificações em Inglaterra e França, este projecto foi sendo gizado desde 1937 e previa um desembarque em três pontos da costa portuguesa, realizado simultaneamente a uma vasta operação terrestre que cortasse as linhas nacionalistas até à fronteira de Portugal com a Extremadura espanhola. Apoiava-se nas várias centenas de portugueses que lutavam ao lado dos republicanos espanhóis, parte dos quais foram selecionados e reagrupados em dois aquartelamentos portugueses na Catalunha – em Els Hostalets de Balenyà e Sant Joan de les Abadesses – a partir do segundo semestre de 1938.
Em finais desse ano, a ofensiva das tropas nacionalistas sobre a Catalunha cortaria cerce qualquer possibilidade de realização do Plano L. Nos últimos dias de 1939, Cortesão e a sua família iniciam a fuga em direcção à fronteira francesa juntamente com a restante cúpula dos exilados portugueses, entretanto transferida para Barcelona. A crónica impressiva dessa travessia dos Pirenéus deixou-a Cortesão num dos raros textos autobiográficos que nos legou. Intitula-se No desfecho da Guerra de Espanha e foi escrito escassos dias depois de ter atravessado a fronteira para o lado francês pelo Coll d’Ares, acompanhando uma coluna de portugueses que abandonava apressadamente os seus aquartelamentos catalães. A sua homenagem a Barcelona ficaria fixada no poema A agonia da urbe, que os azares de uma vida tumultuosa deixariam inédito até pouco depois da sua morte – «À noite, a angústia aumenta na cidade. / O incêndio alastra. / O Céu é de fornalha. / A cada instante, num crescendo, / Galga a maré: trovão horrendo, / Ruge mais próxima a batalha…»
Os anos de Jaime Cortesão na Espanha republicana decorreram na permanente expectativa de uma reviravolta na situação interna portuguesa que nunca chegou a ver. «Hoy me anuncian que la revolución de Portugal será mañana», escrevera Azaña no já longínquo Verão de 1931, registando uma das várias informações recebidas da parte de Cortesão, que – como sempre – os factos acabariam por desmentir no dia seguinte. A debilidade dos meios do exílio político português e as suas consabidas dissensões internas, a institucionalização do Estado Novo salazarista e o encaminhamento final da Guerra Civil espanhola, encarregar-se-iam de minar todas as acções sucessivamente pensadas ou executadas pelos exilados portugueses e seus aliados republicanos em Madrid, Valência ou Barcelona. Ora, se assim sucedeu no que respeita à dimensão política da presença de Cortesão em Espanha entre 1931 e 1939, bem diferente foi o fecundo resultado do seu trabalho historiográfico no país vizinho.
«Se puede hacer más historia en Madrid que en Lisboa», terá dito Jaime Cortesão a Manuel Azaña, numa noite de 1931 em que ambos conspiraram longamente em casa de Martín Luis Guzmán sobre os destinos da Península Ibérica. De facto, neste particular, Cortesão conseguiu cumprir a expectativa que tinha sobre si próprio. Entre um curso sobre navegações atlânticas ministrado no Centro de Estudios de Historia de América da Universidade de Sevilha a convite de José María Ots Capdequí e investigações inéditas nos fundos da Biblioteca Nacional de Madrid e no Archivo de Indias, durante os seus anos espanhóis Cortesão logrou dar um impulso decisivo à obra que o consolidará como um dos primeiros historiadores portugueses do século XX. Nestes anos virá a lume a extensa colaboração emprestada à História de Portugal dirigida por Damião Peres, que constituiu a sua primeira grande síntese sobre a temática dos descobrimentos, assim como algumas das suas controversas teses sobre o descobrimento pré-colombino da América pelos portugueses. Anunciando uma das linhas mais originais do seu pensamento, divulga também o primeiro dos textos em que reflecte sobre os pressupostos ideológicos da expansão portuguesa e lhes rastreia uma inspiração joaquimita: «O franciscanismo e a mística dos descobrimentos», publicado pela Unión Ibero-Americana na Revista de las Españas, em 1932.
Em Agosto de 1933, residindo Cortesão na Calle de Ayala, em Madrid, assinou um importante contrato com a Editorial Salvat, de Barcelona, para a preparação de dois textos de fôlego sobre os primórdios da expansão marítima portuguesa e a colonização do Brasil que integrariam a Historia de América y de los pueblos americanos dirigida por Antonio Ballesteros Beretta. As convulsões da Guerra Civil de Espanha – seguidas da prisão de Cortesão em Portugal, em Junho de 1940, e, finalmente, do seu banimento para o Brasil por ordem de Salazar, em Outubro desse ano – ditaram o sucessivo protelamento desta empresa editorial, que acabou por ser publicada entre 1947 e 1956, quando Cortesão já trabalhava ao serviço do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, onde se notabilizou como especialista de história da cartografia e da formação territorial do Brasil nos séculos XVII e XVIII e professor do Instituto Rio Branco. Tal como antes em Madrid, era agora no Rio de Janeiro que Cortesão encontrava meios para cumprir a melancólica profecia de que sempre poderia fazer mais ciência no exílio do que em Lisboa.
Os anos de Jaime Cortesão na Espanha republicana decorreram na permanente expectativa de uma reviravolta na situação interna portuguesa que nunca chegou a ver. «Hoy me anuncian que la revolución de Portugal será mañana», escrevera Azaña no já longínquo Verão de 1931, registando uma das várias informações recebidas da parte de Cortesão, que – como sempre – os factos acabariam por desmentir no dia seguinte.
(Fonte: Jaime Cortesão / Raul Proença. Catálogo da Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984). Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985)
Para mais informação:
OLIVEIRA, Francisco Roque de. Jaime Cortesão (1884-1960). En OLIVEIRA, F. R. (ed.). Leitores de mapas: dois séculos de história da cartografia em Portugal. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal; Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa; Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, 2012, p. 125-135. ISBN: 9789725654811 [também em versão ebook]
Francisco Roque de Oliveira é investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa e Doutorado em Geografia Humana pela Universitat Autònoma de Barcelona (2003).
Ficha bibliográfica:
OLIVEIRA, Francisco Roque de. Jaime Cortesão no Itamaraty: os Cursos de História da Cartografia e da Formação Territorial do Brasil de 1944-1950. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de enero de 2014, vol. XVIII, nº 463. <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-463.htm>. ISSN: 1138-9788.
Investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Professor no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa e Doutorado em Geografia Humana pela Universitat Autònoma de Barcelona (2003).