Fabiana Valdoski Ribeiro*
São notáveis as intervenções do Estado em favelas da América Latina. Em muitos países, a primeira década dos anos 2000 representou um avanço de políticas de urbanização de favelas e de regularização fundiária de interesse social. Por décadas elas foram reivindicadas por diversos movimentos sociais urbanos. O objetivo principal era dar as condições básicas de vida aos moradores das favelas com implantação de infraestruturas, como sistema de abastecimento de água, rede de esgoto, parques, abertura de ruas para ventilação e luminosidade. Também fazia parte dos objetivos um processo participativo dos residentes como forma de não romper com os laços existentes entre eles. A ideia central era construir um projeto coletivo no qual os novos espaços construídos fossem usados e mantidos pelos próprios moradores.
No entanto, os processos de participação avançaram com dificuldade, principalmente pelas relações de assistencialismo dentro da maioria das favelas. Se por um lado, houve melhoria das condições de habitação, por outro, o uso de acordo com as vontades do moradores não foram contempladas resultando em conflitos. O próprio poder público reforçava as relações entre ONGs, entidades e outras instituições na decisão sobre os projetos e os moradores se transformavam em simples expectadores da mudança da favela. Por isso, muitos dos limites dos processos de urbanização de favelas estão ligados à prática do assistencialismo.
MUITOS DOs limites doS processos de urbanização de favelas estão ligados À prática do assistencialismo.
Na metrópole de São Paulo, com mais de 11 milhões de habitantes e com aproximadamente 10% deles vivendo em favelas, as políticas de urbanização foram postas como alternativa desde os anos 1980. Desde este período, um conjunto de recursos financeiros, tipos de programas e formas de atuação estão sendo desenvolvidos para alcançar os objetivos propostos. Uma das ações do poder público local foi selecionar as favelas e articular os projetos com muitas instituições que atuavam nelas. Este é o caso da Favela Monte Azul na periferia da cidade de São Paulo. Nela se executou um projeto de urbanização de favela entre os anos de 1992 até 2008. A conquista de um novo espaço público foi surpreendente.
De uma favela produzida sobre uma encosta e um córrego, com recorrentes problemas de deslizamento de barracos e enchentes, se transformou numa referência de projeto. Construiu-se quadra poliesportiva, piscina, parque, padaria comunitária, biblioteca, um teatro de arena dando uma nova estampa ao lugar. No entanto, eis que os moradores dela estão condicionados às normas de usos dadas pela ONG na qual realiza os trabalhos assistencialistas dentro dela. Por isso, os jovens da favela não podem usar a quadra a qualquer momento do dia. O parque, com brinquedos para as crianças, são usados por aquelas que fazem parte da escola vinculada ao projeto da ONG. O acesso à biblioteca também é regulado pelas normas da instituição que faz a gestão do novo espaço. O conflito aparece entre moradores e ONGs pelo uso dos novos espaços públicos.
O conflito aparece entre moradores e ONGs pelo uso dos novos espaços públicos.
Casos como a da Monte Azul nos revelam as contradições internas a estes tipos de políticas. A forma de imposição de uma maneira de uso do espaço pela ONG, subordinando os moradores, se realiza pela necessidade destes últimos aos serviços prestados pela instituição, ou seja, pelas formas assistencialistas existentes lugar.
A marca do assistencialismo, como núcleo do conflito, justamente é vista quando percebemos que os moradores não participam em nenhum momento das decisões sobre o seu próprio lugar de morada. Por meio da gestão do espaço, a ONG, formada por não moradores, decidiu sobre o projeto de urbanização da favela. A presença da população se resumiu a algumas pessoas de apoio no contato com aqueles que possuíam casas afetadas pelas obras. Como resultado da mesma gestão, se compôs as regras de uso do espaço público e limitações para aqueles que vivem no lugar.
Os ingredientes ONG, moradores e políticas públicas na escala do lugar proporcionaram para a Monte Azul uma melhoria das condições de habitabilidade invejável para qualquer uma das favelas existentes em São Paulo e também para muitas outras no mundo. Mas, a imbricação entre os sujeitos que nela estão produziu um emaranhado de relações que subordinou os moradores à Associação existente.
Será que estamos diante de uma derrota de um dos objetivos das reivindicações dos movimentos sociais urbanos, ou seja, da possibilidade, por meio de uma política pública e da gestão participativa direta, de poder usar os novos espaços públicos de acordo com as vontades da população que lá vive? Justamente questões como esta começam a aparecer no cenário das cidades latino-americanas.
Para maiores informações:
RIBEIRO, Fabiana Valdoski. As Contradições das Políticas de “Urbanização de Favelas”. REPHE 13, agosto de 2008, p. 40 – 68.< https://sites.google.com/site/rephe01/textos>.